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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vamos falar de Praxe e Política

 

Despedida de um Intercambista, © João M. Pereirinha

Imagem © João M. Pereirinha 2013

 

Há muito que se pode discorrer sobre a dita “Praxe”, e aquilo que ela representa e como é utilizada. Desde a forma irracional como é aplicada, à mistificação dos dogmas, dos conceitos e das vivências que ‘nela’ se inserem. Cheguei até, há uns anos, a esboçar um artigo com dois colegas e amigos brasileiros que estudaram em Coimbra. Os quais apadrinhei, no sentido lato da palavra, e a quem as únicas vezes que gritei ou levantei a voz foi entre um brinde e outro de festejo. Saíamos envergando “Capa e Batina” – sem nunca cumprir qualquer ritual, e sem perder a paciência e o vagar de explicar aos incautos que, “traje” é a roupa dos ranchos (tão popularizados pela mediocridade do Estado Novo) e que aquela indumentária, além de ser de livre acesso é, em primeiro lugar e acima de tudo, parte da identidade da Universidade de Coimbra. Muito à margem de qualquer putativa regra de humilhação ou subjugação que possa existir nessa entidade abstrata que é designada por “Praxe”. Em nome da qual a JSD afixou um cartaz esta semana dizendo que "Praxe é Coimbra". Não é!

 

Não me levem a mal. Bem sei que é difícil ser tolerante perante atitudes de potencial polarização. Não é por acaso que esta questão gera tanto atrito. E dificilmente será resolvida se for encarada como um fenómeno isolado e alheio ao resto da sociedade. É antes de mais um problema cultural e educacional. Impulsionado de fora para dentro das universidades, e dialeticamente exposto e devolvido por estas, desta forma. Uma cópia do “modelo de Coimbra”, ressuscitado após 20 anos de interregno, entre os anos de 1960 a década de 80.

 

É imprescindível que se distingam práticas de convivência e celebração coletiva com caris histórico e académico – como é o caso da Serenata Monumental de Coimbra, ou até a Queima das Fitas – que têm um carácter e uma vivência comunitária e identitária, daquilo que se entende ou pode consentir enquanto “ritual de iniciação”, ou “Praxe”. Um e outro, não são a mesma coisa nem sequer são dependentes ou originários um do outro.  

 

Falando sobre o tema, de parte a parte, com paixões e ódios exagerados, há vários erros que são cometidos quando se começa a debater o tema. E Portugal tem um exemplo perfeito, quando há uns anos se discutiu a questão a propósito de um pseudo-ritual que culminou com a morte trágica de quatro jovens na praia do Meco. O problema foi olhar-se sempe para o mal da praxe focado na exepção, os aceidentes, e não na regra, a humilhação. Desde logo, quem defende a dita “Praxe”, interioriza a ideia de que ele a advém de uma tradição ancestral. Sendo, por isso, necessária e imutável. Esquecendo, como é óbvio, que à exceção de duas ou três universidades portuguesas, (Coimbra, Évora, Braga, Lisboa e Porto) as restantes existem há pouco mais de 30 anos ou nem isso. Além do mais, é imprescindível que se distingam práticas de convivência e celebração coletiva com caris histórico e académico – como é o caso da Serenata Monumental de Coimbra, ou até a Queima das Fitas – que têm um carácter e uma vivência comunitária e identitária, daquilo que se entende ou pode consentir enquanto “ritual de iniciação”, ou “Praxe”. Um e outro, não são a mesma coisa nem sequer são dependentes ou originários um do outro. Têm a suas ramificações, e interligam-se em algumas pontas, mas uma coisa é a celebração e a festa inerente a toda uma comunidade, interna e externa à Universidade e às celebrações da vida académica. Outra coisa totalmente diferente é a necessidade de obedecer a uma espécie de “Código de Conduta”, conhecido como “Código da Praxe”, com diversas variações de instituição para instituição.

 

Ora, esse mesmo “código”, tem dois grandes defeitos: primeiro diz-se não juridicamente vinculativo e informal, mas ao mesmo tempo está escrito, ratificado, assinado, é distribuído e (como aconteceu há um ano) é até autorizado por algumas universidades; depois, onde a maioria se queixa de que seja excessivamente restrito e hierarquizado, creio que o maior dilema advém mais da forma do que do conteúdo. Isto é, o problema não é a “praxe” ser hierarquizada só por si, mas o facto de que essa escala de ‘poder’ ser vinculada não ao mérito, mas sim ao demérito demonstrado unicamente através do número de matrículas, símbolos na lapela e objetos de cozinha. Além do mais, a forma com é interpretado o código é desde logo maniqueísta. Mas podem admitir, tirando alguns fanáticos e outros tantos tolos como eu, poucos o leram. Na verdade, em parte alguma (que me lembre) existe a exigência, o conselho ou a indução de que, para integrar o próximo, o antecessor o tenha de humilhar ou agredir. Pelo contrário, apesar de o “código da praxe” ser mais restrito que o próprio Código Militar, ele prevê apenas ligeiras sansões para quem, eventualmente, desrespeitar alguma norma de trato ou estar. Sansões que não vão além de umas palmadas nas unhas e – nos idos de 60 – umas perseguições que não davam em nada, perante a fuga do infrator…

 

Como disse no início do texto, também tive um padrinho, e tive um afilhado que teve um afilhado. Nunca os “mobilizei” ou fui “mobilizado”, mas marcámos imensas saídas à noite, jantaradas, cafés e jogos de futebol. Porque o conceito de apadrinhamento passa antes pela proteção, por servir de guia e alicerce ao caminho do outro. E foi sempre o que fizemos: andámos sempre e tantas vezes de ‘capa e batina’ pura e simplesmente porque éramos alunos da UC, e fomos a todas as festividades Académicas, não porque elas tinham alguma coisa que ver com a obsoleta “praxe”, mas sim porque queríamos festejar e celebrar esse período académico.

 

Uma coisa que sempre achei ridícula em Coimbra, mais do que a “praxe” em si, é o desconhecimento tanto de quem está há anos na universidade como de quem chega, fruto dessa mistificação do passa-a-palavra. Não existe lei ou regra alguma que impeça seja quem for de utilizar “Capa e Batina”

 

Aliás, uma coisa que sempre achei ridícula em Coimbra, mais do que a “praxe” em si, é o desconhecimento tanto de quem está há anos na universidade como de quem chega, fruto dessa mistificação do passa-a-palavra. Não existe lei ou regra alguma que impeça seja quem for de utilizar “Capa e Batina”, ou que obrigue quem quer que seja a gatinhar na rua, a ser humilhado ou a cumprir qualquer tipo de ordem de outrem, ou qualquer colega. Pelo contrário, seria obrigação (tanto das famílias como do Estado) que quem chega à idade adulta e ingressa numa universidade, tivesse a consciência cívica suficiente para distinguir humilhação de integração; perceber que a hierarquia deve ser uma prova de mérito e não o contrário; de saber receber acolhendo e não hostilizando; e que a maioria das ordens e distinções de grande parte dos rituais de “praxe” estão enquadradas criminalmente como crimes de ódio, homofobia, sexismo, machismo, etc., e não por acaso – ao contrário da ‘Capa e Batina’ (eclesiásticas) que evoluíram para uma uniformização não discriminatória – a sua forma de repressão comportamental tem origem no fascismo discriminatório dos anos 1940 e 1950. Que pretendia distinguir os universitários (privilegiados) da ralé.

 

O segundo grande erro em que a maioria das pessoas incorre ao entrar nesta discussão (e friso mais uma vez que escrevo de memória) surge no choque entre a demonização, por parte de quem não viveu essa realidade (ou a viveu de forma traumática), e a irracionalidade da parte de que está embrenhado no assunto e tem uma noção sórdida e no mínimo distorcida da realidade. Para quem, aquela margem de poder, de comando e imposição de vontade sobre o outro durante a ‘praxe’, é mais importante e satisfatória do que as próprias notas na universidade (claro, visto que o poder aumenta por matriculas) ou do que o curso em si. E cuja única reflexão que tira do ato é de uma “diversão” irrefletida, à custa do seu ou do sofrimento alheio. Contudo, esta divisão de argumentos, de onde resulta o medo de quem está de fora ou prestes a entrar no ensino superior, acaba por funcionar como catalisadora de novos aderentes. Pelo medo de não pertencer aos grupos; pelo medo de ser excluído; pelo medo de enfrentar uma espécie de máfia organizada em código. Ora, aqui está uma bela ideia para se passar a julgar os crimes e queixas decorrentes de atividades de “praxe”: crime organizado?! Talvez… Mas não vamos tão longe.

 

Este “fenómeno”, que de anos a anos metemos debaixo do tapete, ou ressuscitamos, é um processo de estupidificação da relação com o outro, que deriva, em parte, da falta de cultura e do isolamento individual.

 

Não esqueçamos que este “fenómeno” não é exclusivo de Portugal. Também existe aqui no Brasil (de onde escrevo) e chama-se “trote”; nos restantes países e universidades europeias e até nos EUA, com as irmandades, fraternidades, etc. Esquecer isso, é o terceiro grande erro. Este “fenómeno”, que de anos a anos metemos debaixo do tapete, ou ressuscitamos, é um processo de estupidificação da relação com o outro, que deriva, em parte, da falta de cultura e do isolamento individual. De uma ideia de cacique, do poder hierarquizado, através de linhas de influência e amiguismo, que se vinculam de geração em geração através da uniformização, da humilhação e da proteção entre pares.

 

E esse é verdadeiramente o problema das “praxes”. É acima de tudo um problema social, que podemos ver na forma como funcionam os partidos e municípios; algumas empresas e instituições; escolas e universidades – e é também por isso que a maioria ou todas lhe são coniventes – porque nos habituámos que assim seja. Mais fácil do que pensar, conhecer, descobrir e explorar, tornou-se óbvio e interiorizou-se a ideia geral de que se sobe na vida e se conquistam objetivos, obedecendo a quem está em cima e humilhando quem chega e está por baixo. É uma bolha civilizacional, depois das revoluções francesas, da reconstrução europeia, das lutas de 60 e de todas as crises económicas e sociais que atravessámos e atravessamos, chegamos aqui, num volte-face onde estamos de mãos dadas com a política do caciquismo.

 

O pior do caciquismo, e eu pude observá-lo de perto, é que estamos a criar uma nova geração com poucos valores democráticos, pouco sentido de honestidade e honra, e escasso profissionalismo e idoneidade ou transparência. Transpirando os maus hábitos da desonestidade, falsidade e clubismo, no jogo de cordas entre amizades e trocas de favores, cargos de fachada e recompensas ou humilhação.

 

O pior do caciquismo, e eu pude observá-lo de perto, é que estamos a criar uma nova geração com poucos valores democráticos, pouco sentido de honestidade e honra, e escasso profissionalismo e idoneidade ou transparência. Transpirando os maus hábitos da desonestidade, falsidade e clubismo, no jogo de cordas entre amizades e trocas de favores, cargos de fachada e recompensas ou humilhação. Desde a política pública para a gestão privada (ou vice-versa). Desde as associações, às juniores empresas e desde as freguesias às associações empresariais. Onde em vez do desenvolvimento coletivo, impera a lei da sobrevivência, em cada um atua como um vampiro esfomeado que só obedece à sua cede de poder e de estatuto ou à fé de conquistar algo pela bajulação de quem for mais próximo desse poder. Pouco importam as ideias, as capacidades técnicas e os serviços, a qualidade ou a filantropia. Passamos a viver contagiados pela ideia de que, por todo o lado, qualquer instituição está minada de interesses, caciques, oligarquias e lacaios.

 

O problema da “Praxe”, não é a “Praxe” em si. Mas sim a sociedade que a criou, tolera e alimenta. É um problema de quem, no fundo, a acha divertida e faz dela uma forma de vida. E agora, tornou-se, também, um problema da JSD.



*Adaptação de uma crónica originalmente publicada a 25 de setembro de 2015.