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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Sobre as estantes que importam

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Desde que começou o período de isolamento e quarentena, nas últimas semanas, os comentadores e convidados de programas de televisão, ou até mesmo alguns dos protagonistas das múltiplas lives agora a acontecer constantemente nas redes, decidiram transformar o plano de fundo das suas filmagens numa competição de ego intelectual, sobre quem tinha ou não a melhor estante, a melhor colecção de livros e a mais abastada biblioteca do reino. Independentemente de muitas vezes isso ser contraditório à capacidade de raciocínio demonstrada durante a exposição oral. Chegou até a criar-se uma página, com bastante sucesso e senso de humor, onde essas estantes são analisadas e avaliadas, a excelente Game of Estantes. Surgiram até painéis de imitação à venta. O que é certo é que as estantes existentes, ou não, na casa de cada um, assim como os objetos e volumes de papel que as compõem, se tornaram meio de ostentação, relíquias de padrão de classe e objetos de contemplação, mais do que meios de reflexão, conhecimento e interesse crítico.

 

Infelizmente para mim, quando me mudei para o Brasil, uma das coisas que mais me custou deixar em Portugal foram, precisamente, os livros. Hoje podiam estar a enfeitar uma parede de dois metros e meio composta por quatro estantes individuais, como no passado. Mas ao invés disso, estão encaixotados e guardados à espera de um dia poderem voltar a conhecer a luz do dia. Talvez por isso a minha crítica a tamanha exposição de livros, talvez ela não passe de recalque ou inveja. Não sei, mas outra coisa que também surgiu nos dias de confinamento, foi a ideia da produtividade criativa e do consumo obrigatório de literatura, como obrigações e imposições morais (e intelectuais), muitas vezes elitistas. Como se houvesse qualquer tipo de dever social em nos alienar da convulsão humanitária, para nos afogarmos num mar de letras, escrito no passado, ou num poço de criatividade, rumo ao futuro.

 

Então, achei interessante este quadro de Carl Spitzweg, pintado em 1848, após as revoluções francesas e as guerras napoleónicas, como uma crítica ao conservadorismo europeu e aos intelectuais e estudiosos da época, que procuravam discorrer sobre o mundo alheios à realidade e com o nariz enfiado nos manuais do passado. Uma crítica àqueles que eram incapazes de compreender que a sociedade tinha mudado, porque viviam alienados do mundo exterior. Uma censura aos Ratos de Biblioteca que vivam na solidão empoerada das suas bibliotecas rançosas.

Os livros, as estantes e as bibliotecas são importantes, mas só se servirem como meio de aproximação e desenvolvimento crítico e não como forma de distanciamento social. 

 

Pintura de Carl Spitzweg, "O Rato de Biblioteca" (1848), 49,5 x 26,8 cm, óleo sobre tela, Grohmann Museum.