Resta-nos o riso.
Resta-nos o riso. O sorriso é em si uma perversão ofensiva do rigor que nos querem impingir. Resta-nos o escape. Resta-nos aquilo que ainda não podem aprisionar, indeterminadamente, e na totalidade. A liberdade de esgalhar um sorriso de par em par perante qual for que seja a adversidade. Até perante a morte. Sobretudo perante a morte. Sorrir é vencer qualquer batalha perante a autoridade. Qualquer autoridade. Mesmo que nela esteja implícito um choro dilacerante. Podemos sempre cobrir o ardor das feridas com um sorriso aberto, genuíno e convicto de que, nós, mesmo perante amputação da vida, sabemos e temos consciência de algo superior e mais vasto que o momentâneo tiranismo social a que nos subjugam. Sorrir é uma provocação. Por isso somos as únicas criaturas que abraçamos essa possibilidade, de brindar o nosso inimigo com algo que nunca nos poderá tirar, para si mesmo, o sorriso.
Por isso é que ninguém gosta verdadeiramente do sorriso. O sorriso ridiculariza qualquer ação. Deveríamos sorrir. Perante tudo isto, deveríamos matar os dias de riso, e destituir os governos, os bancos, à gargalhada. Aos magotes de boa disposição. Com a boa malandragem de um sorriso bon vivant. Devolver a farsa com ironia estampada nos rostos. Morder a inevitabilidade com a insipiência que um sorriso esconde de quem não o partilha. Não nos vamos rir deles, vamo-nos rir para eles. Não vamos sorrir porque “a vida é bela”, mas porque a vida é mais do que isto. Vamos sorrir porque podemos sorrir, e porque não há termos para o sorriso. Mas também porque o sorriso incomoda. É um atestado de palermice mútuo da situação, e ao mesmo tempo destrutivo de qualquer possibilidade de catequização. O sorriso não é um antídoto à miséria, nem um antónimo da seriedade, é antes um exercício de consciência perante o vasto, no entanto vão, casual e efémero. Tudo passa pelo crivo da existência etérea, fluída.
Rir é em si a contradição de que rir não é bom. Rir é um escapismo à revelia de Deus. Que a todos criou com a impossibilidade de resistir ao tempo, ou sequer suprir a morte. Rir é atirar pedras aos agelastas que nos privam da presença dos nossos filhos, como Hades fez com Deméter ao raptar Perséfone. Rir agora é superar qualquer finitude nas ações daqueles que nos querem imbuir de choro. Sorrir é tornar presente a fuga do quotidiano.