Querido Pai Natal, afasta-nos do ódio
Querido Pai Natal,
Peço desculpa pelo atraso, em três décadas é a primeira vez que te escrevo. Nunca te mandei uma carta, um e-mail, uma mensagem e nem sequer um áudio. Nada. Portanto, espero que leves em consideração esse atraso e que ainda vá a tempo de cobrar os pedidos que ficaram por realizar.
É irrelevante justificar o bom comportamento da minha infância, mas garanto que foi exemplar. Tinha boas notas, participava de atividades extracurriculares, ajudava na igreja, fazia voluntariado, amei o próximo e ajudei desconhecidos e até deixava os meus primos ganhar nos jogos de tabuleiro. Confesso que duvidava da tua existência, mas sempre aceitei de bom grado e com alegria aquilo que por ventura recebia.
Na verdade, tive a sorte e o privilégio de nascer num país e numa época onde as necessidades eram poucas e as oportunidades eram muitas. Apesar das carências, todas as crianças têm acesso à escola, a hospitais e centros de saúde e a fome é residual ou mínima. Graças a isso, a maioria tem ou terá a oportunidade de tentar alcançar os seus sonhos, por mais deslumbrantes que sejam e por mais dificuldades que enfrentem. Se possível, não deixes que ninguém mude isso.
Todavia, o motivo desta “carta” é outro e sobre outra realidade bem diferente. Não vou descrever os dados da miséria e da pobreza no Brasil. Tu já os conheces, de certeza. Estou a escrever para te avisar de outras duas cartas que vais receber. Ambas de duas meninas, de 11 anos, a Allana e a Aline, cujos principais desejos neste Natal (e noutros) passam por ter material escolar para estudar, aprender a ler e a escrever e ir à escola. A primeira teve ainda a nobreza de pedir uma boneca e um carrinho para a mana, de 2 anos.
Essas duas cartas a que tive acesso, Pai Natal, partiram-me o coração. Porque por mais que eu e outras pessoas, familiares ou amigos, possamos ajudar essas meninas – com todo o material escolar que precisam para começar o ano letivo que vem com alguma decência – sei que não vamos poder eliminar a pobreza que lhes rouba oportunidades, nem sequer diminuir os fatores de desigualdade que impedem que cresçam e vivam em pé de igualdade com as outras crianças, deste e de outros países. Mas talvez tu consigas, afinal, quem viaja o mundo inteiro numa noite pode tudo.
A meio da sua carta, a pequena Aline diz assim “ah, eu gosto tanto do Natal porque é tão, tão bom os abraços e os beijos, os carinhos, nesse tempo temos que deixar as mágoas e as brigas de lado”. Por favor, Pai Natal, não só neste tempo, mas no resto do ano, afasta o ódio do coração dos homens que nos têm expropriado do projeto humanista que ergueu a sociedade. Não me ouças a mim, ouve a pequena Aline, que ainda acredita no mundo e merece conquistar os seus sonhos.
Sinceramente, João.