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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

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Proteger estátuas e desprezar vidas

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Quando os europeus chegaram à América (que só mais tarde viria a ter esse nome, fruto de um autoplágio de Vespúcio), reduziram as culturas existentes a pó: escravizaram e mataram os povos que nela habitavam, destruíram e saquearam as suas cidades e templos, e derreteram as suas estátuas, relíquias e objetos de culto para fazer barras de ouro. Os objetos perderam-se, mas ficou um retrato de uma época, que nos séculos seguintes iria povoar e explorar um continente inteiro à base de mão de obra escrava, importada do continente africano. Uma época onde se deu então início ao maior processo de apagamento cultural, que serviu de base para a economia extractivista e dependente que hoje explora o hemisfério sul em prol do hemisfério norte, ocultando o "outro" do processo histórico. Nada melhor como o "Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas" - outrora intitulado "Dia de Camões, de Portugal e da Raça" - para reflectir sobre isso, que hoje se espelha na sociedade.

A imposição de símbolos, significados e mitos está na base da assimilação cultural levada a cabo pelos europeus, imposta aos povos indígenas e africanos, em prol do lucro mercantil e depois da construção das nacionalidades. Nela está patente uma visão de inferioridade da cultura, religião e modos de vida de um povo que depois se extendeu à sua cor de pele, origem geográfica e ascendência genética. Por isso os "nossos" heróis são necessáriamente os demónios que assombram o passado de quem herdou um lastro de discriminações, na base da violência e da segregação. Por isso é importante discutir uma noção de sociedade que não se limite à glorificação de mitos escolhidos apenas por uma parcela dela, muitas vezes homens ativos nessa destruição.

Nisso temos que incluir as estátuas, nomes de ruas, pelourinhos e até os roteiros de visita aos palácios europeus, onde até as prustitutas podiam ter escravos, mas onde a história dos escravos sexuais, o seu comércio, reprodução e maus tratos foi totalmente apagada dos roteiros ou reescrita. Estátuas não são história e a história não é um objeto material. Ela escreve-se e interpreta-se através do olhar do presente sobre o passado, e sobre o olhar do passado na sua visão de mundo, sociedade e presente. E dela fazem parte também os significados que cada época atribuí aos seus signos e objetos materiais, seja erguendo estátuas de traficantes de escravos (do séc. XVIII) no séc. XIX, ou derrubando essas estátuas em 2020, a história não se "apaga", mas constrói-se em cima disso e com isso.

Dizer sobre um tirano que "a história irá julgá-lo", mas depois alegar que "não devemos julgar a história" dos esclavagistas, é escolher por adoptar tiranos de estimação. É defender um lastro de abusos inconciliáveis com a dignidade humana, ocultados por narrativas de branqueamento histórico replicadas através da educação, que impedem o debate e a análise crítica do passado. É defender também a imposição de uma visão parcial do mundo, em cima de um património cultural e institucional de privilégios e desigualdades.

Afinal, se o critério de não derrubar estátuas como parte da história fosse sólido, estátuas como a de Saddam Hussein não deviam ter sido derrubadas. Ou então, se não se pode incutir culpa aos heróis que derrubaram o fascismo, por quê derrubar ou profanar as estátuas da ex-União Soviética nos países da Europa de leste. Se a comoção é pelo valor intelectual do homem representado, então onde está a indignação pela constante profanação do túmulo de Marx?

O problema, como na maioria das vezes, é ideológico. Tanto quanto é identitário. Afinal, como o próprio Marx explica, toda a exploração levada a cabo nas "Índias Orientais" e a descoberta de ouro e prata na América, exterminando indígenas, caçando e escravizando os povos africanos, em minas, plantações e engenhos: "são todos fatos que assinalam a alvorada da era da produção capitalista. Esses processos 'idílicos' representam outros tantos fatores fundamentais no movimento de acumulação originária". E é isso que está em causa aqui: essa acumulação e posterior financeirização do mundo, foi feita à base da exploração e extermínio do outro e da sua sucessiva submissão, social e cultural, através do uso constante da força e de justificações morais, económicas ou religiosas que culminaram no racismo violento e opressor que hoje existe. Uma exploração que foi além da escravidão, das guerras civis, das guerras mundiais, das crises do capitalismo e dos levantes pela independência dos países africanos. Uma exploração que vai até aos dias de hoje, com a brutalidade policial, o encarceramento em massa e a discriminação.

Enquanto os heróis do passado forem os algozes dos antepassados de quem sofre com as injustiças do presente, não há conciliação possível. Eu troco todas as estátuas em prol da dignidade humana. Quem não?!

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