Política, estratégia e pedagogia
Desengane-se quem ache que a população em geral irá repudiar de imediato o ataque xenófobo e provavelmente racista e misógino de que Joacine Katar Moreira foi mais uma vez alvo, por parte de André Ventura. Na verdade, uma grande parte (talvez a maioria) da população não consegue distinguir ataques pessoais (ad hominem) do confronto de ideias, ao mesmo tempo que tem um profundo desconhecimento da história e uma enorme iliteracia política. Estão, portanto, à mercê dos cínicos.
Por isso, fazer política, sobretudo nos dias de hoje, é mais do que defender certas ideias e medidas. Fazer política passa também por ter a capacidade de ler momentos e contextos, social e politicamente. Não saber comunicar-se na era das redes sociais é um convite ao suicídio. Exemplo perfeito disso, entre outros, foi a medida proposta pelo Livre – que já antes tinha sido discutida por outros políticos e partidos – que prevê a restituição do património cultural das ex-colónias aos seus respetivos países. Algo perfeitamente justo. Porém, se noutro momento qualquer o debate já seria complicado e sujeito a derivações e contradições, apesar de moderado; lançado no momento em que estão abertas as feridas do “Luanda Leaks”, das agressões e abusos da polícia e dos gestos dos membros nazis do Chega; ela serviu como mote perfeito para confundir a opinião pública portuguesa – com os menores índices de fruição e participação culturais – entre atacar a ideia e ser racista ou xenófobo, contra Joacine e ao lado de André Ventura (e dos nazis do seu partido).
Para que fique claro, André Ventura teve uma atitude deliberadamente racista, xenófoba e misógina. Ele sabe disso e usa-se disso de forma cínica para controlar o debate a seu favor.
Isto não quer dizer que existam assuntos que estejam vedados ao debate ou que sejam tabus, sob pena de serem usados como “munição para a extrema-direita”, como discutir o legado de figuras históricas ou de movimentos ideológicos. Muito pelo contrário. Por outro lado, também não acredito na ideia da publicidade gratuita. Os vícios e abusos da extrema-direita devem ser denunciados à exaustão e todos os assuntos merecem ser debatidos dentro do espaço público, desde que não sejam pautados pela intolerância. A questão passa por fazer o debate antes das propostas.
Ou seja, ter a perspicácia e a capacidade de permitir que a população se possa apropriar das ideias antes que elas se tornem tabus, bandeiras falsas, ou mesmo uma questão maniqueísta, alvo da mistificação e do preconceito alimentados pela desinformação. Abrir o debate antes de forçar as pessoas a escolher um lado num assunto que não dominam, evitando que se tornem cúmplices dos populistas. Assim como aconteceu com o Aborto, ou mais recentemente com a Eutanásia. Algo que deveria acontecer com qualquer questão, por mais óbvia e transversal que ela pareça. A comunicação, a formação e o diálogo são essenciais para o sucesso e compreensão de qualquer medida.
Uma estratégia que tanto a direita quanto a extrema-direita e a maioria dos populistas têm feito há anos em várias matérias. Quer de uma forma mais institucional, através dos meios de comunicação ou inclusive através do apoio (indevido) de várias instituições religiosas e seculares. Quer através de esquemas imorais (talvez ilegais) e antiéticos, como a propaganda digital e as falsas notícias espalhadas pela extrema-direita. Em coisas tão diversas como a desregulação financeira, passando pelo neoliberalismo e a redução do poder do estado, até ao punitivismo penal, ao conservadorismo reacionário ou a atuação das forças de segurança. E, claro, o medo.
Ao contrário do que a intuição nos diz, muitas destas ideias vão ao encontro do senso comum de grande parte das pessoas. Não por convicção, mas sim porque as pessoas querem respostas simples para problemas complexos e só um dos lados lhes tem apresentado soluções dialogando com elas. Em especial nos últimos anos, um dos lados apoderou-se do espaço público reagindo às necessidades populares, apresentando soluções como: a abstinência contra a gravidez precoce; a prisão e a força policial para manter a segurança e garantir a autoridade; a castração para evitar a pedofilia; as delações premiadas de criminosos para punir a corrupção; a deportação de estrangeiros para salvar empregos e manter a “identidade” nacional… Por mais absurdo que isto nos possa parecer, assim como o racismo e outros preconceitos, estas ideias subsistem.
A pedagogia conta, mas tem faltado. Não se pode exigir esclarecimento onde tem faltado luz. Antes de confrontar as pessoas ou zombar dos atores e adeptos destas políticas, precisamos forcar-nos no entendimento, reivindicando o debate e reinventando a comunicação de ideias. Isso implica a consciência de que o Parlamento não é um fim onde se esgota a política, mas um veículo através do qual o coletivo se representa para transpor as suas ideias e moldar as suas leis e regras de convivência à sua imagem, forma e pensamento.
Portanto, como “um homem só não vale nada” e o “socialismo não cai do céu”, qualquer político, partido e governo (sobretudo minoritários), deve garantir essa comunicação e debate, entendimento e apoio coletivo antes de qualquer proposta, muito além dos períodos eleitorais e das campanhas políticas. A comunicação deve ser a base da organização social.
Hoje, mais do que nunca, os partidos, as forças políticas e os seus atores têm imensas ferramentas à sua disposição e devem ter consciência dessa necessidade. Primeiro, indo ao encontro das pessoas onde eles já estão, na Internet e redes sociais (Youtube, WhatsApp, Twitter, Instagram, Facebook); e depois, ajudando a organizar as pessoas onde elas não vão, em coletivos, assembleias, movimentos e partidos. Para isso, devem fazer mais do que despejar informação, devem ouvir réplicas, aprender com as pessoas e ser uma entre elas. Só assim venceremos.