Polémicas do nosso reino
Um grupo de pais, de uma das cinco turmas a quem se pediu para ler “o nosso reino”, de Valter Hugo Mãe, fizeram emergir uma polémica estéril em torno da linguagem usada no livro. Há dois argumentos que ressaltam sobre esta questão, mas nenhum está verdadeiramente relacionado com a sensibilidade literária. O lado positivo da polémica é que me levou a comprar o romance.
Aviso: este texto é uma reposição de uma publicação no meu Facebook. Contém vernáculo.
Imagem © Taxi Driver (1976, real. Martin Scorsese)
Quando entrei na licenciatura de Estudos Artísticos havia uma cadeira que era o equivalente à Matemática (I, II e II) para os alunos de engenharia. Chamava-se simplesmente: Cultura Portuguesa. Era dada com outros três cursos, entre os quais creio que estava o de literatura portuguesa e de história de arte. No meu ano, no primeiro exame, entre 118 alunos apenas 6 passámos. Eu tive 16. Sabem qual era o problema? A literatura mínima obrigatória contemplava a leitura de um romance de cada um destes autores: Mário de Carvalho (Fantasia para dois coronéis e uma piscina), Valter Hugo Mãe (apocalipse dos trabalhadores), Jorge de Sena (Sinais de Fogo), Eduardo Prado Coelho (Nacional e Intransmissível), fora outros extratos de autores como Eduardo Lourenço e José Gil.
Além de ter lido todas estas obras, li de forma completa o Labirinto da Saudade e a Nau de Ícaro do Eduardo Lourenço, e antes do Sinais de Fogo ter sido removido do exame, fui apresentá-lo em aula por ter sido o único aluno da turma que o tinha lido. Não foi com desprimor que me iniciei a Valter Hugo Mãe, nem foi objetivo da cadeira fazer desprimor entre qualquer autor. Tivemos ocasião de debater assuntos quotidianos, abordar Eça, fazer recensões críticas e ainda fui conduzido à leitura de José Rentes de Carvalho, viajámos por entre os Arquétipos da sociedade portuguesa, os Mitos e o dicionário de termos literários que na altura era uma amostra quase inexistente na net. Tínhamos ainda de estudar os teóricos e investigadores da Identidade, como Stuart Hall e começámos o semestre pela Geração de 70.
Como eu disse, quase toda a gente chumbou. Nos anos seguintes a cadeira foi sendo encolhida, a professora foi substituída e creio que acabou por ser extinta. Tenho colegas que além de me afirmarem que não gostavam de ler, nem a (porcaria, como alguns dirão, do) Apocalipse dos trabalhadores se deram ao trabalho de ler, quando uma das perguntas do exame era (SPOILER): porque é que a personagem principal se suicida no final?
Isto tudo para dizer, a propósito da polémica de merda que se instalou por causa da qualidade ou falta de qualidade dos livros do Plano Nacional de Leitura, ou por causa do vernáculo utilizado em concreto na obra de Valter Hugo Mãe (do qual me vejo forçado a fazer a declaração de intenções: não sou fã) - queimem-se os Charles Bukowski, esses cabrões - que não é a literatura nem a leitura que faz o leitor, é o sentido crítico e a bagagem que este carrega. Não é a escola que define o que é boa literatura, ela deve apenas ajudar o aluno a ter sentido crítico sobre aquilo que lê. Não é por se darem Magalhães ou tablets que se ensina a pesquisar ou a navegar na Internet. Não são as coisas, nem as "ferramentas" ou "aptidões" que formam ou emancipam: é o conhecimento multidisciplinar, com acompanhamento pedagógico, e a relação que se estabelece com as coisas, com o mundo, com as pessoas.
O problema das "listas" em arte, ao contrário das ciências exatas, é esse: eu não vou analisar a estrutura de uma ponte, mas toda a gente crê saber, com certeza e convicção profunda, aquilo que é bom cinema, boa literatura, bons quatros. Para um empresário um artista é um escroque que não percebe nada de negócios, ao passo que ele percebe imenso de Miró. Também posso dizer que deixei muita gente atrás no mestrado de administração e sabem porquê? Porque o papel da arte é a instigação do pensamento. A discussão. A inquietação, o desassossego! E isto adquire-se na análise, não pela obra em si ou por inércia contemplativa.
As pessoas confundem a ideia de que para se ensinar uma linguagem que se tem de usar os produtos mais refinados ou as práticas e as estruturas mais avançadas. Eu não preciso de formar realizadores para ensinar história e estética do cinema, pelo contrário, ao fazê-lo estou a instruir o gosto sem excluir necessariamente aquilo que é bom ou mau. O que é facto é que, tanto se escolhe, tanto se opina, tanto se filtra e depois temos adultos que esgotam José Rodrigues dos Santos, papam Paulo Coelho, comem Gustavos Santos e aquele que promete constantemente falhar, como se fossem pipocas, partilham artigos falsos como se fosse a única verdade do mundo, votam em partidos demagógicos e têm os piores resultados de participação cultural da Europa e da OCDE e manifestam claramente mais interesse no Love on Top, que pela discussão das manifestações artísticas, cívicas e culturais do país e do planeta. Mas, mesmo assim, até com estas coisas é possível aprender: como não se faz.
Portanto, contem comigo para a subversão das camadas mais novas e para a emancipação do intelecto, mas não me apanham na censura do gosto nem dou para o peditório de cortar pilas e tapar cus. Há modas piores. Vão ver os tops de qualquer coisa ou das pesquisas na net ou o histórico de sites dos putos. Insistam antes para que haja professores de artes em todas as turmas: de cinema, de história de arte, de cultura, de fotografia, de espetáculo... mas depois também não impliquem porque se levou um Scorcese para as aulas ou porque o professor os levou a ver pipis na Gulbenkian, ou porque lhes mostrou fotos de Nan Goldin, Ryan Mcginley, Larry Clark, Helmut Newton, só para falar dos mais soft.
Isto só me faz lembrar o paralelo entre a cena do The Graduate (1967, real. Mike Nichols) e do Taxi Driver (1976, real. Martin Scorsese) em que ambos personagens levam a menina a ver filmes badalhocos, mas o que os separa é o contexto, só que mesmo o objetivo sendo diferente em cada um deles, nenhum é melhor ou pior que o outro. Nem por um ser uma atitude de mau gosto e outro apenas uma inocência que parte da ignorância brutal do indivíduo. O que faz toda a diferença é descobrir isto acompanhado, ou assistir às cenas de forma apática, mais tarde, sozinho. Ainda bem que há professores que podem dizer aos miúdos: vejam, estas personagens dizem isto ao miúdo, isto é bullying. Foda-se, ainda por cima toda a gente fala e ninguém leu o livro, comigo incluído.
ps: o que acontecerá quando os pais dos mesmos alunos resolverem ler Gil Vicente?!