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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

O Estado deve ser a Grande Casa Nacional das Artes

NECESSIDADES - Radiografia de um Piano, © João M. Pereirinha 2013-2016, Coimbra.

Ao contrário da esmagadora maioria dos textos que escrevo, começo desde já por referir que sou licenciado em Estudos Artísticos (FLUC) e mestre em Administração Pública e Empresarial (FDUC), com tese em Desenvolvimento Cultural Sustentável. Onde me debrucei sobre uma análise exaustiva do cenário cultural português, até 2015, abordando a partir daí possibilidades de gestão, desenvolvimento e planeamento culturais tendo em conta a Sustentabilidade. Dito isto, considero que parente as dificuldades que a Cultura já está a enfrentar, e prevendo que se venham a agudizar, é imperativo que o Estado deve assumir um papel central no dever constitucional de aprovisionamento de bens culturais, salvando estruturas, artistas e, acima de tudo, vidas. 

 

Renunciando de antemão à manipulação da cultura e respeitando a sua natureza múltipla e plural, o Estado deveria expandir as suas formas de Regulação e Tutela, ampliando os mecanismos de Intervenção Indireta (no fomento à criação) e investindo em novos meios de Intervenção Direta (na criação de serviços próprios). Tento em conta o paradigma de isolamento ou distanciamento sociais, a ausência de soluções sanitárias seguras e eficazes que permitam a criação e fruição de espetáculos, a queda abrupta de consumo de bens culturais e artísticos, e a paralisação completa da produção coletiva, urge que se inverta a lógica de dependência (quase) absoluta do mecenato e da iniciativa privada, uma vez que a intervenção da Política Cultural deve ser mais direta quanto mais desprotegido esteja o sector. Neste momento, essa intervenção deve ser mais direta, não só no Consumo e na Conservação (teatros municipais e nacionais, festivais de cinema e música, bibliotecas, televisão pública, salas municipais de exposições, museus, arquivos, cinemateca, etc.), mas também na Formação, Criação, Produção e Distribuição, salvaguardando a subsistência de artistas, estruturas, coletivos, e de todos os trabalhadores do sector, com vista ao futuro. O Estado precisa de ser a Grande Casa Nacional das Artes.

 

Para tal, numa primeira instância o governo e o poder legislativo deveriam ponderar uma bateria de Regulamentação e Fomento ampla, que vise a proteção dos interesses nacionais. Como por exemplo, quotas de inclusão de criações nacionais em plataformas de streaming, fixação de quotas de exibição de conteúdos artísticos e culturais na televisão, fixação de preços de livros em formato físico e digital. Numa segunda instância, deveria ser implementada uma isenção fiscal de produtos culturais e artísticos, a subsidiação de espetáculos reagendados, cancelados ou previstos em streaming, e a criação de auxílios de emergência a infraestruturas culturais independentes (teatros, bibliotecas, salas de cinema, museus, etc.). Por último, devia ser criada uma plataforma nacional de criação e divulgação cultural, capaz de integrar artistas e coletivos (incluindo técnicos) no setor público. Seja através de um mecanismo semelhante ao que permitiu a integração de precários na função pública, seja através de um regime excecional de contratação, neste momento, a única forma de garantir a subsistência de muitos daqueles que dependem da produção artística (que representa mais de 2% do PIB), é através da nacionalização (se lhe quiserem chamar assim) de parte desse tecido laboral.

 

Para evitar uma tentativa de controlo estilístico, ou uma possível gestão economicista, destas medidas e de todos os que fossem abrangidos por elas, a administração central, em colaboração com as administrações locais (descentralizadas), deveria criar uma plataforma com poderes de regulação, gestão, divulgação e autonomia administrativa – cujas nomeações e contratações funcionassem de forma semelhante às entidades reguladoras – que funcionasse como espaço de curadoria e distribuição. Na qual poderiam e deveriam ser desenvolvidas e divulgadas residências de criação artística (no seu sentido mais amplo), assim como estudos de investigação científica, e ainda uma rede de cooperação, exposição e divulgação de artistas, conteúdos e formações, acessíveis ao grande público e a nichos específicos, digitalmente. Aberta também à interação e contribuição ou apoio do público, permitindo a livre troca e o diálogo entre si. 

 

Por fim, as cidades não devem deixar de ser um grande polo cultural. Neste processo cabe-lhes não só sinalizar as estruturas culturais e artísticas locais, como também incorporá-las na planificação de futuras estratégias de intervenção e desenvolvimento cultural local, de forma participativa e abrangente. Sendo os municípios os principais investidores culturais do país, é preciso que as cidades vivam um processo de transformação, de inclusão e de dinamismo, mesmo que virtual e digital, mas participativo e plural. 

 

A cultura e as artes têm salvado a vida de muita gente durante a Pandemia. Portanto, ou salvamos TODOS aqueles que fazem parte da cultura hoje, ou perderemos TODOS com o seu desaparecimento amanhã.

 

Imagem da série NECESSIDADES - Radiografia de um Piano, © João M. Pereirinha 2013-2016, Coimbra.