O absurdo destemido
Nos últimos tempos, a sociedade portuguesa parece afogar-se em sucessivas ondas de pânico moral, que abrem caminho à instalação do fascismo. São ataques de conservadorismo baseados em questões morais que procuram esvaziar o debate público, desmerecer garantias democráticas, ofuscar os problemas sociais e criar novos inimigos. Desta forma, enquanto todos se escandalizam com um cartaz, uma pintura numa estátua e uma série animada, ignoram a presença de um fascista na assembleia ou as ramificações de neonazis nas polícias e forças de segurança, através de organizações anónimas ou robôs que promovem ódio nas redes sociais. Últimamente, qualquer sinal de humanidade é escandalosamente alarmante, menos uma manifestação nazi contra o antirracismo. O absurdo (destemido) acaba por ser normalizado.
Enquanto a extrema-direita promove as suas práticas impunemente, a maioria dos partidos políticos resolve declarar que "Portugal não é racista", entrando nessa onda de despolitização, esvaziando o problema em vez de o enfrentar ou debater, e desarmando quem vise combater o racismo. Ao mesmo tempo, uma série animada é censurada na televisão pública, de ofício, após 'reclamações' contra o seu conteúdo! Isto não é surpreendente, pois uma das estratégias dos fachistas é condicionar a opinião pública, a sociedade e até o próprio poder público, mesmo antes de chegar ao poder. Talvez alguém defenda agora que Portugal "não é homofóbico nem machista", mas a recente polémica mostra o contrário.
"Destemidas" é uma série infantil sobre: "Histórias de mulheres excecionais, ousadas e decididas que fizeram o que quiseram e lutaram pelos seus sonhos. (...) Que foram capazes de ir para além das convenções e preconceitos sociais e triunfaram perante as adversidades", diz a RTP. Na verdade, é uma adaptação da obra literária “Culottées”, da ilustradora Pénélope Bagieu, um conteúdo original da France Télévision que já ganhou diversos prémios. Mas a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) recebeu várias queixas sobre um episódio específico, segundo as notícias: "as queixas centram no episódio sobre a femininista francesa Thérèse Clerc, ativista pelos direitos das mulheres. O episódio da série de animação aborda temas como o aborto, homossexualidade, feminismo, divórcio e religião". Entretanto, o Provedor adianta que determinou que a série fosse retirada da RTPPlay e que não voltasse a ser exibida. Porquê, se o próprio diz que o objetivo era "tornar tranquila essa relação com o facto de muitos adolescentes se interrogarem sobre a sua identidade de género"?
Por isso, foi criada uma Petição Pública "Pela reposição do programa "Destemidas" na RTP", que se limitava a apresentar “mulheres corajosas que mudaram o rumo da história” (nas palavras da própria RTP). Pois estas são histórias reais, de mulheres reais que não podem ser apagadas! Dizer que o conteúdo é inapropriado para crianças, é negar o direito de existência dessas pessoas.
Porém, o facto de a ERC, o Provedor do Espectador ou a própria RTP (que retirou o episódio para "refazer" a dobragem), que são entidades públicas, que obedecem à Constituição e devem zelar pela pluralidade e a igualdade de direitos em todas as suas ações e decisões, terem tomado partido das "queixas" apresentadas é gravíssimo e inadmissível!
Além de ser um atropelo à história e existência das mulheres ali representadas, é um atropelo à dignidade de todos os que se sentem retratados nessas histórias, vidas, experiências, dificuldades, sofrimentos, sentimentos e liberdade. Mas pior do que isso: é a institucionalização da violência e do ódio pautado no moralismo de quem condenada a existência do outro através do revanchismo, do nacionalismo, da supremacia branca e da misoginia.
Ou seja, o acolhimento do fascismo disfarçado de conservadorismo.