Fazer a Guerra em nome da Paz
As maiores ameaças à liberdade e ao chamado "mundo livre" e global, hoje mais do que nunca, estão à frente de várias democracias liberais e a maior de todas comanda duas das instituições mais poderosas e destrutivas do mundo e do ocidente: a Casa Branca e o Pentágono. Após a influência conquistada com a vitória dos aliados sobre os nazis na Segunda Guerra Mundial, os EUA têm escolhido os seus inimigos a gosto, mitigando a capacidade de defesa e autonomia dos seus aliados e montando uma estrutura física, geopolítica e também virtual — não esquecer que as agências norte-americanas não só têm acesso aos cabos submarinos de telecomunicações como admitiram espiar os próprios aliados — que precisa de ser alimentada para se manter.
De lá para cá tem projetado, precipitado e amplificado os conflitos mundiais, quer com pretextos políticos, militares, comerciais ou morais, intervindo na autonomia interna de outros países (incluindo democracias), tanto com pretextos plausíveis, como inventados ou infundados. Com um investimento em arsenal militar que supera todos os orçamentos somados dos seus aliados, todos os presidentes dos EUA dos últimos 70 anos têm inaugurado ou herdado uma guerra por mandato. Guerras essas que funcionam tanto como resposta às crises do seu próprio capitalismo selvagem, como estratégia política e populista de reeleição em momentos de crise social interna, assim como resposta à exigência de manter uma posição permanente de hostilidade, justificando políticas isolaciinistas, proteccionistas e desumanas, de controlo, vigilância e punição, quer em regiões externas, quer em território nacional. Onde se inclui, por isso, também a guerra às drogas, ao terrorismo e a própria corrida às armas durante e após a Guerra Fria e a dissolução da URSS (que os EUA não queriam).
Em nome da liberdade, os EUA têm diminuído a liberdade mundial. Em nome da paz, têm causado a guerra. Assumindo-se como vanguardistas da libertação, os líderes do mundo ocidental têm comprado e embarcado nos conflitos armados projetados pelos norte-americanos, amordaçados à sua política externa e à dependência mútua, tanto bélica como financeira, que os une. Raras exceções houve onde pareceu nascer uma tentativa ténue de inversão de ciclo, através de blocos de contrapesos, que nesta altura ou estão também dominados por um paralelismo de políticas ou pela estagnação económica, social e política, fruto do bloqueio e intervenção internacionais, como acontece na esmagadora maioria dos países sul-americanos.
É importante referir que no meio deste esquema abstrato de ganhos e perdas da "Teoria dos Jogos", cada conflito custa vidas, gera mortes e destrói a esperança de milhões de pessoas, de todos os lados. Os milhões de refugiados da Síria (até há poucos anos um paraíso na Ásia Ocidental) não são alheios a isso, mas o reflexo direto das mortes que se estendem além do cenário de guerra e que chegam até à porta de quem procura não se importar com isso. Os migrantes no Mediterrâneo ou os cemitérios cheios de soldados americanos, a maioria pobres, resulta também de um negócio de vidas, onde uns fogem da guerra e da fome para morrer no mar; enquanto outros aceitam enfrentar a guerra para matar a fome, sustentar a família ou conseguir a nacionalidade, a troco da própria vida. Não existe bem ou mal, mas sim uma interpretação moral do contexto que aceitamos como boa ou má. Os atos de terrorismo não são uma exclusividade do suposto inimigo do ocidente, mas sobretudo uma estratégia para arregimentar apoio interno através do medo e do ódio. Muitas vezes, uma falsa bandeira que vimos erguida de um lado e esquecemos de procurar do outro.
O recente ataque dos EUA ao aeroporto internacional de Bagdade, matando o general iraniano Qassem Soleimani e também outros cerca de vinte e cinco oficiais iraquianos — aliados dos EUA — não só constitui um ato de terrorismo despropositado e gratuito, como resultará imediatamente numa escalada de tensão local que se pode alastrar a todo o globo. Podendo, no limite, arrastar-nos para um conflito mundial. Ao mesmo tempo que, ao que tudo indica, poderá precipitar uma nova crise do mercado energético, com o preço do petróleo a aumentar vertiginosamente, sem que tenhamos ainda uma alternativa plausível para a sua substituição nas cadeias de produção.
Entretanto, prevê-se que os media irão alanvacar o conflito consoante o interesse dos americanos, apesar de não ser muito inteligente. O perfil de Qassem Soleimani, por exemplo, já está a ser desenhado de forma parcial, empolando a sua importância na estratégia irania e ofuscado o seu papel no combate ao Daesh (Estado Islâmico).
A espionagem de que o Irão é agora acusado de exercer junto dos países limítrofes, não pode ser motivo ou justificação para agredir militarmente um pais soberano, caso contrário os EUA não estariam a salvo dos seus próprios aliados ou países vizinhos, por fazer o mesmo, em especial na América Central e do Sul, mas também na Europa. Um jogo de sombras no qual se tornaram peritos ao longo de anos, antecipando as próprias derrotas e executando ataques ou pressões cirúrgicas, num jogo de soma zero que visa o controlo, mais do que a liberdade. Se por um lado a retórica anti-imperialista do Irão, após a revolução de 1979, encaixa como uma luva na visão simplista de antagonismo cultural e civilizacional que tanto Trump como outros líderes mundiais querem vender aos seus eleitorados. Por outro lado, temos visto como Trump já falhou várias vezes ao lançar a isca de um conflito bélico, seja com o Irão, a China ou até com a Coreia do Norte, sem que ninguém tivesse mordido o anzol. Além disso, rodeado de bases americanas e com a ameaça latente de Israel junto às suas fronteiras (que não nega nem confirma a existência de armas nucleares) o Irão sabe os riscos que um confronto aberto e convencional lhe pode causar, à imagem daquilo que foram as duas guerras do Iraque e a da Síria. Porém, não será o medo que os limitará, mas sim a inteligência e o calculismo. Algo que não abunda do outro lado.
É provável que o confronto continue, mas de forma dissimulada e localizada, sem dar o flanco a uma invasão. Porém, este ato irresponsável dos EUA, depois de ter quebrado o acordo de cooperação nuclear entre os dois países, não só servirá de mote para uma crescente união em torno da hostilidade, como legítima o aquecimento da corrida às armas e a retoma de conflitos adormecidos em várias regiões, funcionando também de travão ou recuo das medidas de desenvolvimento sustentável e transição energética, condicionadas tanto pelos confrontos bélicos como económicos, em torno do capital energético. Adivinha-se, portanto, uma grande crise económica, social e humanística na entrada desta nova década.
Nada como estar de volta ao território do medo, com uma ameaça nuclear, para estimular o conservadorismo, a polarização e o antagonismo moral contra um inimigo externo. Coisas que costumam dar votos e fortalecer quem está no poder e é candidato a uma reeleição, após sofrer um impeachment no congresso. Trump pode ser louco, mas não é parvo.