ENTRE A CONSCIÊNCIA E O SILÊNCIO. PERDÃO.
Hoje é dia da Consciência Negra, no Brasil. Dia de lembrar a cultura africana presente na América e no país, mas também dia de lembrar que toda a riqueza criada nos últimos cinco séculos assenta nos ombros de 12,5 milhões de negros escravizados e arrancados de África, por Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Holanda e Estados Unidos. Muitos deles não chegaram sequer à América e grande parte suicidava-se, ou pelo menos tentava, já que as primeiras redes de segurança dos barcos foram instaladas para o evitar. Entre os que chegavam, em piores condições do que as galinha-d'angola, e os que morriam, segundo o historiador Laurentino Gomes, ao longo de 350 anos, em média 14 cadáveres eram lançados ao mar por dia, ao ponto de que até os tubarões teriam mudado as suas rotas para seguir os navios negreiros.
Os negros foram tratados como massa de trabalho, aliada ou substituta dos índios, erguendo, extraindo e construindo as riquezas e monumentos dos impérios ocidentais, tratados como bens materiais, remetidos a uma condição permanente de inferioridade que serviu os estados, a burguesia e a igreja. Uma relação desigual patente até hoje no quotidiano dos descendentes daqueles que sobreviveram, enfrentando a pobreza, a violência e o esquecimento de um percurso que lida com a necessidade de reavivar a memória coletiva face às desigualdades e discriminação constantes a que estão sujeitos. Um povo sem história e sem memória é um povo sem identidade e aos negros, depois da escravidão e da sua abolição branca, até isso lhes é constantemente negado.
A sua presença no mundo foi tão forçada quanto o seu esquecimento. Inclusive nos locais mais recônditos e menos óbvios. Se em Lisboa havia um Poço dos Negros que hoje dá nome a uma rua, para onde os corpos eram atirados e amontoados numa vala comum, em Vila Viçosa, terra dos Bragança, última dinastia de Portugal e do Brasil, não existe hoje memória presente dos escravos sexuais que circularam pelas salas do palácio ou memória descritiva dos que cortaram o pau-brasil dos móveis dos salões ou que extraíram o ouro das talhas, das joias e dos tecidos.
Apesar disso, agrilhoados, subnutridos e desapropriados da sua cultura e até da liberdade intelectual, o povo negro foi capaz de ser subversivo, sobreviver e resistir inclusive àqueles que contra si mesmos aceitavam ser capitães do mato e algozes em nome dos senhores da terra. Figuras tão abstratas e tão concretas quanto a riqueza que lhes passou pelas mãos sem nunca lhes ficar no colo. Mas, o povo negro deu-nos a dança, na qual ensaiava a luta; deu-nos a música, na qual expressava os seus sentimentos; deu-nos novos mitos e religiões, nos quais depositavam a sua fé e as suas preces; e quando a vida parecia pior que a morte, criou o vudu e amaldiçoou aqueles que se achavam seus donos. Desafiaram a ordem, com os seus dreadlocks, a sua vida, a sua inteligência e os seus corpos. Apesar disso, ou por causa disso, o povo negro teve os seus heróis.
Hoje é dia de lembrar os proeminentes Nelson Mandela e Martin Luther King Jr., mas também a memória de nomes como Zumbi dos Palmares, Ganga Zumba, Dandara, Luísa Mahin, Machado de Assis, Teresa de Benguela, Luís Gama, Aleijadinho, Nilo Peçanha, Pixinguinha, Antonieta de Barros, Laudelina de Campos Melo, André Rebouças, Carolina de Jesus, Abdias do Nascimento, Adhemar Ferreira da Silva, Grande Otelo, Ruth de Souza, Pelé ou Marielle Franco. É dia de perguntar: quem mandou matar Marielle?
Ilustrações: "Navio negreiro" (Nègres a fond de cale) de Johann Moritz Rugendas, 1830; "O Genocídio da População Negra" (2013), de Carlos Latuff; e Cartoon "Marielle Franco" (2018), de Vasco Gargalo .