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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

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É imbecil minimizar o racismo

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O problema das falácias que assentam em afirmações absolutas é que basta um exemplo para as desmentir. Isto é, basta haver um pato de outra cor qualquer para desmentir a falácia de que “todos os patos são brancos". Isto já seria bom para desconstruir a ideia de que "não existe racismo em Portugal", mas afirmar que só "existe em alguns sectores" também é uma falácia, que transforma a questão numa pauta moral e individual, meramente comportamental. Que não é. Afirmar isso não prova a sua inexistência. Mas é sinal de miopia, política e social.

Esta forma superficial de tratar a questão tem um objetivo instrumental, ao remeter o racismo para a esfera pessoal ela isenta aqueles que não se declaram como tal e ajuda a moralizar e espionar os comportamentos dos restantes, permitindo que se classifique algo de "bom" ou "ruim" e ainda de "imbecil" e "extremo", quando se tenta aprofundar o debate e a questão. No limite, serve para bloquear as mudanças na estrutura social e económica que torna uns priveligiados e outros discriminados, ao mesmo tempo que legítima e normaliza todos os abusos quotidianos que vão além da esfera da dimensão pessoal e íntima. É como dizer que "se todos reciclarmos o aquecimento global acaba", mas ignorar ou consentir a poluição gerada pelas cadeias alimentares, as empresas multinacionais que esgotam recursos naturais e fazem negociação de cotas de poluição, a constante produção excessiva de produtos não essenciais e sem valor de uso ou as implicações do consumo energético à base de combustíveis fósseis.

O problema é que o racismo não resulta apenas das ações individuais, ele é uma construção que resulta da estrutura de exploração do trabalho - que segrega uns e não outros, que explora mais uns que outros, e que foi criada, defendida e perpetuada até hoje pelo estado, a igreja e os mercados financeiros - acabando por contaminar as relações individuais, conscientes e subconscientes. Ele é uma imposição da estrutura capitalista e do modelo social em que vivemos, que se alimenta da concessão de espaço e não da resistência organizada contra ele.

Assim como o machismo, o racismo é estrutural e está presente não só nas nossas ações como no nosso pensamento, nas nossas relações, no nosso imaginário, nas instituições e até no direito, quando, por exemplo, se nega ou dificulta a nacionalidade a alguém com base apenas na consanguinidade ou quando se admite ou não determinado nome. Ele está na retórica do mérito, que se fundamenta num tabuleiro de jogo viciado, onde uns partem várias casas à frente, com três lançamentos de dados e outros não podem sequer jogar. Por isso, combatê-lo vai além de uma mudança de paradigma individual e de meras conquistas pontuais. Pois da mesma forma que as quotas não eliminaram o machismo, nem a eleição de Obama mitigou o racismo no próprio país, a representatividade só será significativa se acompanhada da criação de uma consciência que se insurja contra o resto.

A explosão de revolta e indisciplina que surgiu um pouco por todo o mundo - que muitos chamam de violenta, de vandalismo, de "imbecil" e de extremismo - nada mais é do que o reflexo de uma sociedade que apenas reconhece o outro na medida da sua criminalização. Mas não é por isso que deixa de ser legítima. O próprio Martin Luther King Jr., que o establishment gosta de citar como voz do pacifismo, sabia que uma ação não-violenta significa exercer uma ação coletiva que seja capaz de perturbar o funcionamento normal da sociedade, além das regras, das instituições e da moral. Direccionando essa revolta popular para uma força de combate capaz de coagir as elites. Embora ele discordasse da violência como tática, ele estava longe de defender um protesto passivo e complacente, que tantos usam para deslegitimar protestos radicais ou envergonhar manifestantes indisciplinados. E diga-se, pintar estátuas está longe de ser radical. Da mesma forma que criticar ou analisar e rever obras, corrigir ou limar a linguagem ou atitudes, também não é censura e está longe de queimar livros. Afirmar isso é uma falácia que recorre a falsas equivalências para censurar ou anular a voz do oprimido.

Vejam como isso se insere muito mais no âmbito da representação do que qualquer outra coisa. Ainda assim, enfrenta tanta resistência ou manipulação, como confundir a obra e a pessoa de quem é representado com o resultado final. Eu posso desenhar um cão, mas dificilmente vocês concordarão que possa ser considerado um canídeo.

Além disso, argumentar que esta questão é inoportuna durante a Pandemia, é ignorar que a Pandemia serviu apenas como estopim de um problema que já cá estava e que só piorou com ela, sendo brutalmente mais mortal e sacrificante sobre os pobres, as pessoas racializadas, os sem-abrigo e as mulheres. Mas diminuir ou deslegitimar sempre todas as questões identitárias, porque "não interessam" às pessoas, é o mesmo que dizer "primeiro nós" e "depois eles". E quem se serve desses argumentos morais são os supremacistas, a extrema-direita e os fascistas. Então, não acusem quem se esforça por politizar as pessoas, por criar consciências ou quem luta por desconstruir preconceitos, de alimentar aquilo que muitos recusam ver ou combater. No limite, isso é uma tremenda desonestidade e injustiça. É como culpar as mulheres e o feminismo do machismo ou os pobres das desigualdades.

"Vidas negras [também] importam", porque até aqui não têm importado nem têm sido minimamente respeitadas.

Simplificar estas questões ou mimetizar argumentos superficiais é que gera a polarização e não o contrário. Deixar que o debate se faça nos termos impostos pelos movimentos populistas ou recuar com medo deles, é abandonar o debate à lógica do senso comum conservador, normalmente dominada pela direita e pelas elites, em vez de procurar apoio através da politização e consciência coletiva. O que envolve tanto trabalho prático como a criação de consciência, como fazia o Partido Panteras Negras, nos EUA, que enquanto organizava a resistência, promovia grupos de leitura onde, segundo Ângela Davis, inclusive as mulheres de baixa renda, apesar das dificuldades linguísticas, encontravam eco nas palavras de Lenin. Portanto, a questão não é calar o assunto, mas arranjar forma de o amplificar criando sentidos e significados.

É imbecil minimizar o racismo porque ele não desaparece por decreto ou após a discussão. Ele permanece latente, quer se queira admitir ou não.