DESISTIR OU LUTAR
Por vezes, sinto-me muito cansado. Por vezes, apetece-me desistir. Infelizmente, não consigo. É impossível olhar para o lado e relaxar durante muito tempo, ignorando a onda de desumanidade que se está a abater sobre nós sem espaço para refúgios. A lama transborda por todos os lados e a liberdade, o senso crítico, a história e tudo aquilo a que chamávamos de Humanidade, está a escorregar-nos pelos dedos, como grãos de areia fina.
Os sinais já estavam aí há muito tempo. Porém, agora passaram das aparências para se tornarem evidências do caldo tóxico que se estava a desenvolver. Primeiro, fizeram-nos acreditar na lógica do "eterno crescimento económico" em função do "mercado livre" e desregulado, sem espaço para a ideologia. Depois, sobraram os cacos de uma sociedade miserável, desigual, apinhada de ódios.
Há cerca de 50 anos, Marshall McLuhan explicou-nos que "o meio é a mensagem" e hoje os movimentos fundamentalistas anti democracia dominam os meios, logo controlam a narrativa. Hoje, o principal meio encontra-se na Internet, seja através da deep e da dark web ou por intermédio das redes sociais, cujos modelos de negócio dos aglomerados tecnológicos alimentam e são alimentados pela disseminação dessa menagem: o ódio, a desigualdade, a uniformização do pensamento e o negacionismo histórico e científico. Mensagens e narrativas que vão encontrando ecos em membros das forças de segurança, nas sedes religiosas e nas elites.
Todos eles, com os seus motivos próprios, concorrem para mascarar a história, distorcendo a linguagem e aproveitando-se dos grupos mais suscetíveis à sua mensagem. Sejam os frustrados pelas consequências das múltiplas crises, sejam os desamparados, sejam os fanáticos reaccionários, sejam os grupos mais isolados ou com maiores défices culturais, sejam aqueles que, mesmo tendo um determinado nível de formação superior, são movidos pela pretensão e ambição de colher frutos disso. Estes últimos estão a conseguir protagonismo, poder e dinheiro. Compensa.
Depois, a estratégia passa por criticar, impedir ou destruir qualquer progresso das garantias legais e dos direitos sociais ou qualquer desenvolvimento civilizacional. Coisas que estão na base da melhoria das relações humanas, laborais e institucionais, ou seja, um alvo claro a abater, assim como qualquer um que as defenda.
Contudo, esta guerra não se trava em campo aberto e às claras. O caminho para o abismo tem sido percorrido por diversas trilhas, desde a desinformação selectiva dos meios de comunicação convencionais - onde o cinismo ideológico chegou há décadas e a censura linguística se tornou prática corrente - às redes sociais ou à Internet em geral, onde a ausência de fronteiras, o tráfico de dados pessoais e a possibilidade de automatização de perfis, grupos e ataques, facilitam e impulsionam o crescimento das ondas fascistas que assolam o mundo. E que estão claramente a ganhar em todos os campos.
Estão a ganhar porque não têm oposição. Assim como nos anos 30/40 e depois nos anos 60/70, os golpes sociais, militares e de estado, o fundamentalismo, a segregação e a violência, estão de novo em voga e a tornar-se na prática corrente, a par das restrições e limitações à liberdade: de pensamento, expressão e locomoção. Tudo isto com o respaldo de redes de influência, compostas por políticos, pseudofilósofos, influenciadores, trolls e robôs bem coordenados e posicionados em grupos e plataformas onde colhem apio e geram influência, fazendo transbordar informação falsa, ataques de reputação ou propaganda enganosa para o dia-a-dia. De forma tão transversal que são capazes de penetrar em qualquer bolha, tornando plausíveis coisas tão absurdas como o terraplanismo, ou dizer que uma determinada ditadura nunca existiu, ou que o problema da sociedade é um determinado grupo social e político, ou dizer que existe uma ditadura gay, ou criar a sensação de que a corrupção é endógena. Enfim, as narrativas adaptam-se ligeiramente em cada país.
Seja a elogiar políticas autoritárias, a descredibilizar a política, a atacar minorias, a fazer montagens e memes de humilhação ou a divulgar frases de efeito e a espalhar notícias falsas, eles estão a ganhar e a conseguir inflamar opiniões com base em preconceitos. Estão a conseguir gerar medo e repulsa, projectando ódio em outros grupos sociais e políticos. Estão a conseguir criar um clima de insegurança e medo, numa lógica de antagonismo dogmático, excludente e violento, criando uma ideia falsa de despolitização que abre espaço para ações onde os fins justificam os meios. Ou seja, a linguagem justifica os atos e o politicamente incorrecto justifica a violência e a brutalidade ou vice-versa.
Assim, surgem os golpes, surgem as purgas, surgem as censuras e as restantes atrocidades e barbaridades, anunciadas, ditas e feitas. Assim, com minorias irrisórias e líderes patéticos, os fascistas têm passado a ser eleitos (ou autoproclamados) e incentivado hordas de limpeza étnica, racial, intelectual e social que dão medo e são assustadoras. Isto porque estão a executar uma estratégia de guerrilha e terror, invisíveis aos contra-ataques de quem devia combatê-los.
São imunes às suas contradições e debater com eles ou desmentir as suas ideias é irrelevante. Não gera efeitos. O importante seria quebrar a corrente de ligação e comunicação com as suas bases de apio, algo essencial em qualquer estratégia de militar. É preciso dominar o seu meio, as redes, ou trazer as pessoas para outro: as ruas, as empresas, os cafés e lutar frente a frente.
É por isso que me apetece desistir, mas também é por isso que não consigo. Porque se eles estão em todo o lado, eu não abdico de andar por toda a parte... Haja esperança! Não desistam também, nem desanimem. A luta faz-se igualmente de pequenos gestos anónimos e a utopia é um amanhã por vir!
Imagem: Mural de Diego Rivera, "Indústria se Detroit", 1933, Detroit Institute of Arts, Detroit (Estados Unidos). Retirada daqui.