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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

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AS TRAGÉDIAS DO PASSADO E AS FARSAS DO PRESENTE

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O grande equívoco na mente de muita gente que se horroriza quando ouve ou lê comparações entre alguns políticos de extrema-direita atuais com Hitler ou Mussolini, é recorrer tão somente à imagem mental que tem destes, após praticadas, reconhecidas e derrotadas as suas atrocidades. Esquecendo ou ignorando o processo de construção social e política que lhes deu acesso ao poder devastador que ambos soltaram, primeiro nos seus países, depois no mundo. Sobretudo o primeiro. 

 

Hitler não foi um génio do mal, nem tão pouco se impôs imediatamente pela força. Começou por ser um indigente sem qualidades, um bobo frustrado e um canastrão de bar, predisposto a reclamar de tudo. A sociedade alemã também não era toda ela nazi, anti-semita ou fervorosamente fascista. A esmagadora maioria achava-o um palhaço inconsequente. Mas bastou-lhe um terço dos votos em 1932, uma tragédia e dois ministérios para passar a ser detentor do poder com maioria absoluta, em 1933, onde se manteve com o apoio de uns e o silêncio de outros.

 

A linguagem simples; o domínio da propaganda em massa, usando a rádio e o cinema como forma de chegar às bases populares; a permanente teatralização da realidade através de uma campanha constante, mesmo depois de chegar ao poder; a moralização das classes desfavorecidas e afetadas pela guerra e pela crise económica; a capitalização do ódio nas minorias, através de uma retórica ultraconservadora e antiliberal baptiza em parte pela igreja, apesar dos conflitos éticos palpáveis; todas estas coisas somadas permitiram que o seu discurso prosperasse, espelhando-se na sociedade como um movimento social inevitável que encontrou ecos e reflexos noutros países.

 

Aquilo que muitos achavam que não passaria de retórica, alarmismo ou exagero, passível de ser dominado pelo sistema e contido com a chegada ao poder, rapidamente perdeu o controlo e tornou-se na regra vigente. 

 

Hoje sabemos que as suas ideias ou estratégias conduziram ao desastre económico, social e humanitário. Porém, simples e pouco elaboradas, elas pareciam fazer sentido para muita gente na época. Inclusive para os empresários, que se renderam ao lucro imediato, fechando os olhos às atrocidades evidentes. Não houve um delírio coletivo espontâneo, mas houve uma política delirante que se foi instalando graças à ausência de resposta daqueles que preferiam ignorar ou relativizar o fenómeno.

 

Funcionando como polo de aglutinação de todo o tipo de teóricos da conspiração e movimentos reaccionários, à sua volta todos eram contra o socialismo, todos eram autoritários, favorecendo os militares e a polícia, todos tinham um cunho nacionalista e conservador, apelando aos valores tradicionais. Não havia clareza sobre a razão, nem certeza de um modelo único de sociedade, mas havia um ataque comum a valores que se pretendiam excluir desta, para dar lugar à história de um passado glorioso que unia todos eles. 

 

Entre a ilusão de que a retórica não passaria disso mesmo e o espanto de quando a violência se legitimou, primeiro nas urnas, depois nas ruas e na guerra, houve uma escalada de culpas onde a complacência teve um papel determinante. Onde os movimentos democráticos foram omissos no amparo dos anseios da sociedade. Onde a normalização dos absurdos levou à banalização do mal como poder instituído e inamovível. Como um cachorro que morde o pescoço do outro para testar os seus limites, os fascistas e os nazis foram mordendo o pescoço da sociedade, mas quando esta se tentou queixar morreu degolada. 

 

Ao mesmo tempo, "a grande diferença entre a direita fascista e não fascista era que o fascismo existia mobilizando massas de baixo para cima (...) os fascistas eram os revolucionários da contra-revolução", explica Eric Hobsbawn. Portanto, quando fazemos uma comparação histórica entre o que aconteceu e o que está a acontecer, é necessário que exista um paralelismo exato, para saber aquilo que estamos a presenciar e o que poderá suceder. Porque à exceção dos golpes militares, os estados autoritários não se impõem, vão-se construindo e instalando nas brechas da democracia.