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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

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As ondas de pânico anti-democráticas

Diário de uma quarentena em risco

Volta e meia, a extrema-direita tenta criar brechas na sociedade através de ondas de pânico moral, que se aproveitam das contradições da democracia, em especial dos partidos de esquerda, com a ilusão de uma ameaça autoritária, como também dos afetos negativos, como o ódio e o desprezo pelo outro. Pois o medo é contrário às utopias.

 

Assim, não se pode falar de discriminação sexual ou de igualdade de género nas escolas, porque isso é "ideologia de género", mas é normal haver aulas de educação moral e religiosa católica (que inventou o termo); é por isso que qualquer doutorado, investigador e professor de história, que seja ou tenha sido filiado a qualquer partido de esquerda, não pode pisar numa sala de aula nem ser usado como exemplo (Rui Tavares), mas é natural exaltar a retórica do ex-ministro da educação do regime salazarista (José Hermano Saraiva), que manietou os movimentos estudantis e mandou confinar e alistar os estudantes universitários de Lisboa, Coimbra e Porto, para lutar no ultramar, e é normal que ele tenha programas na televisão pública, sobre história, mesmo que altamente criticados pela comunidade científica, por recorrer a narrativas nacionalistas e ignorar os factos quando os há, ou tirar ilações erradas quando não os há; da mesma forma que é natural expurgar determinadas parcelas da sociedade, que são naturalmente vistas como marginais (os ciganos, os estrangeiros ou os negros), marginalizadas pelas contradições da democracia liberal afeta ao capitalismo, sem nunca atacar ou questionar as elites que se beneficiam da exploração dos trabalhadores, acumulando privilégios e impunidade; da mesma forma que é inadmissível que algum elemento dessa comunidade tenha visibilidade para os contradizer (Ricardo Quaresma), por ser jogador de futebol, ao mesmo tempo que não tem problema algum usar o futebol para ganhar afetos e afinidades populares (André Ventura), afinal, só assim se tolera que Eusébio seja um herói desde a ditadura, por servir os interesses da propaganda fascista, sem qualquer hipótese de questionar sequer as contradições da sua origem, nacionalidade e direitos. Assim como os nazis fizeram com os judeus, e os europeus com os escravos, a utilidade do outro esgota-se na força de trabalho dos seus corpos.

 

Mas o problema é quando as ondas deixam de ser pequenas marolas para tubos gigantes ou tsunamis catastróficos, que levam toda a gente por arrasto. Ou seja, à medida que estes abusos se começam a naturalizar, as fortificações da democracia começam a ser cada vez mais inúteis e permeáveis ao isolamento e desmobilização estruturais, acabando por ceder como um balharo de cartas ao vento. Por isso é que atitudes de relativização como a da TSF (ao questionar a audiência se concorda com um plano de confinamento para um grupo étnico) não só é anti-ético como um ato de autoflagelação. No dia que tal plano seja admissível, a própria TSF, o jornalismo e a imprensa ou a liberdade de expressão como um todo, serão também levados pela corrente neofascista.

 

O facto é que além de serem metódicas, estas ondas surgem sempre de fraturas e choques entre as placas tectónicas do subconsciente popular, libertando um poder destrutivo que começa por atacar as margens da democracia, derrubando consigo todos os alicerces da sociedade: atacando a ciência com ignorância; a educação com preconceitos; a justiça com pacotes anticrime ou populismo penal; e a liberdade de imprensa, ou a verdade como um todo, com a desinformação; atingindo por fim os trabalhadores, à medida que amplia as desigualdades e limita os seus direitos. Porque o tsunami do pânico moral é contra qualquer movimento de emancipação social, e a sua força destrutiva faz com que seja impossível manter-se à tona, ou lutar contra a corrente sem se ser arrastado na lama. 

 

Como eu já escrevi antes, nestes casos, a dúvida sobre o elementar é a arma mais mortífera dos ignorantes, pois serve para legitimar o absurdo e desqualificar o essencial. É como perguntar a alguém se ela concorda com a gravidade, para a convencer a saltar de um penhasco. Basta ver o que se passa no Brasil.

 

Cartoon de © Nuno Saraiva Art