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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

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As mulheres que pensam e os zombies que andam

The Walking Dead Season 5 Poster HD Wallpaper

Nota: Todo o texto é sobretudo indicado para pessoas que acompanharam as 4 primeiras temporadas e primeiro episódio da 5. Ou para quem não se importe com spoilers. Por motivos óbvios de contenção é dada enfase apenas a algumas personagens em detrimento de outras, não por ignorância nem esquecimento.

 

Os números falam por si, mais de quinze milhões de espectadores em cada um dos dois primeiros episódios da quinta temporada de «The Walking Dead». Se não for um record de audiências é, no mínimo, sinal da capacidade de magnetismo que esta série norte-americana e o seu conteúdo geram. Mas qual é afinal o conteúdo que perpassa a série e é transversal a todas as suas temporadas? Aparentemente é um cenário de holocausto, onde os que morreram se ‘transformaram’ em «zombies», ou «andantes» [walker’s], e onde os vivos tentam sobreviver, lutando tanto contra os mortos como contra os vivos. No entanto, eu creio que o tema principal são «as mulheres que pensam», num embalo e estilo que bebe nas origens do género «melodramático».  

 

Tentarei ser sintomático e explicar, embora que de forma simples, no que consiste tal enredo. De facto, desde a primeira temporada que estamos perante um cenário dantesco que se vai adentrando. No entanto, desde início que o mote para desenvolver a ação se prende com duas características fundamentais do melodrama: a fatalidade do destino, numa performance do inevitável, em que as personagens principais são controladas por forças ou acontecimentos que não conseguem controlar, onde as suas vidas acabam delineadas por delimitações morais; e todos os dramas em torno das mulheres, das suas decisões, das suas frustrações, dos seus desejos e da sua realização ou até os seus maus tratos, mesmo que rodeados de zombies e enfrentando a morte a qualquer altura.

 

Exemplo perfeito destes dois casos encontra-se desde logo nos primeiros episódios da primeira temporada. Rick Grimes é forçado a tornar-se um Herói que, ao longo de todas as temporadas tenta rejeitar sem alternativa. O destino coloca-o num tiroteio, onde acaba por levar um tiro e ficar inconsciente. Acorda já depois da epidemia. A única preocupação: encontrar a sua mulher e filho. A sua mulher? Onde é que ela está? Num acampamento nos subúrbios da cidade de Atlanta, para onde é levada pelo melhor amigo do marido, Shane Walsh, com quem começa a desenvolver uma relação. Também nesse acampamento, há outras mulheres. Como são o caso a realçar de Andrea e, sobretudo, de Carol Peletier.

 

Ora, se Lori começa por tornar a amizade entre Rick e Shane um misto de nebulosidade, honra e desconfiança, culminando com a morte do segundo no final da segunda temporada às mãos do primeiro. Os pensamentos, ingénuos, mas também furtivos, e muitas vezes destruidores e/ou impulsivos de Andrea, e a sua ação, são um catalisador de desequilíbrio e dúvida do rumo que o destino do grupo acaba por tomar. Tanto na primeira temporada: encarando a difícil tarefa de se despedir da irmã; e ponderando morrer na implosão da sede do Centro Para Controlo de Doenças (CDC) no último episódio. Como depois na segunda, incentivando Shane ou a partir ou a tomar o comando e destino do grupo. Que se encontra na quinta de Hershel, que vive com as duas filhas, temente a Deus e na esperança de recuperar a mulher. Assim como na terceira temporada, em que se torna amante do Governador, oscilando entre uma confiança cega no mesmo, uma denúncia descuidada do paradeiro do grupo que vive na prisão, e uma insolência velada à conduta da autoridade que ele representa na cidade de Woodbury, que mantém sob sua alçada com mão de ferro.

 

Mas se os dramas, diálogos e atitudes de Lori, funcionam como principal desestabilizador das emoções de Rick, e ao mesmo tempo como estímulo da sua ação impulsionando-o a ser o Herói que carrega a cruz de todas as decisões morais e éticas, num limbo difícil de discernir. E se Andrea, como primeira linha de discussão e confronto com esses limites, lança por isso a dúvida e desagregação do pensamento coletivo. Mais revelador do cunho melodramático é a evolução e papel de Carol, sendo também a única que sobrevive no elenco até então.

 

Que a quinta temporada comece com Carol enquanto a chave que reúne e salva todo o grupo, é simplesmente genial. Esta é a personagem que na primeira temporada é maltratada por um marido machista, que a reprime e que a desmoraliza. Algo que a mantém cativa da sua autoridade, e a inibe de se expressar perante as outras mulheres. Se a história começa quando Rick parte em busca da sua mulher e filho desaparecidos – cruzando-se inicialmente com um homem que vive com o filho e destroçado pela perda da mulher que é um zombie – a segunda temporada é guiada pela frustração de Rick perante duas mulheres: Lori que vive dividida entre ele e Shane, e Carol que o culpa pelo desaparecimento da filha e demora em recuperá-la viva.

 

Após a morte do marido e da filha, Carol enfim transforma-se. Mas não num zombie, antes na mulher que não se previa que fosse capaz de superar as questões morais e afetivas em prol da sobrevivência e manutenção do grupo e futuro deste, contra qualquer ameaça, sobre qualquer preço. O que implica contornar a moralidade dos seus atos, e matar duas pessoas para que não se propague uma praga, uma espécie de gripe suína; por ensinar as crianças a utilizar armas; por aprender ela mesmo a manusear de forma mestra qualquer tipo de arma possível; por liquidar uma criança psicopata. Se isso a condena a um abandono do grupo depois de revelados os seus atos. Não a impede de ser ela mesma a lutar pela sobrevivência da bebé, filha de Rick, assim como de ser ela mesma que provoca a destruição do falso abrigo onde todos estão condenados a servir de alimento, cativos e prestes a ser abatidos.

 

Ora, isto leva-nos aos restantes pontos fundamentais do melodrama, desde a sua independência enquanto subgénero. Nada acontece ao longo desta série que não seja alvo de discussão sob forma de um diálogo ou vários diálogos intensos entre várias personagens, juntos ou em paralelo. Sobretudo as personagens secundárias. Estes são os motes para a ação. Em quase todos os episódios os personagens são confrontados com questões sociais dramáticas: como viver e pensar o futuro; os verdadeiros inimigos são os nómadas ou restantes comunidades vivas que se guerreiam por alimento e abrigo.

 

Funcionando desta forma como uma gigantesca crítica social subversiva. Á imagem dos melodramas dos anos 50, de Douglas Sirk, Fassbinder, Todd Haynes, ou mais recentes, de Pedro Almodóvar e François Ozon. Onde existe uma forte relação entre uma vida intimamente ligada ao campo como salvação do que resta da vida (sobretudo desde a segunda temporada), após uma vida pós-industrial geradora de epidemias e doenças sociais que se manifestam sobretudo agora, no holocausto – basta ver o comportamento tresloucado e acutilante que funciona como fio condutor entre todos os ‘vilões’ em cada temporada, ou o que se vive devido ao surto do Ébola – e, decorrendo toda a ação nos EUA, não raras vezes, há um realçar dos valores americanos que se vão desvirtuando. Ainda as crianças, sobretudo a bebé, filha de Rick, funcionam como um foco de esperança frágil e indefesa.

 

Resultando assim num enorme simulacro da realidade exagerada, como artifício melodramático – mesmo das relações amorosas constantemente existentes e em foco – uma hiper-realidade de «melos» (enquanto «pathos») e «drama», música e dramaticidade. Embutida num camp de estilos (através de um exagero estético que se confunde com o mau gosto, propositadamente), de vidas passadas, de exageros recorrentes e fatalidades que mais do que nos inspirar terror, nos obriga a sentir a frustração, raiva, tristeza e alegria porque passam as personagens, sem nunca nos dar um final feliz definitivo nem vislumbre do mesmo. Repensando, e reafirmando o ser Humano e o estilo de vida que temos atualmente, cada vez mais, como o verdadeiro inimigo de si mesmo.