As Artes são muito mais do que TPC’s
A Arte é uma forma de expressar a essência humana, por excelência. E como toda a vida, também só se aprende e existe no contacto com os outros e através das relações. Contudo, com o avançar dos anos, vou percebendo como a sua marginalização não só é transversal, como tem contribuído para uma cativação desta por parte de sectores cada vez mais elitizados, por contraste à grande democratização de que outrora foi alvo. Mas, por muitos fatores, políticos ou económicos, ideológicos ou puramente negligentes, a Cultura Artística tem sido desprezada, se não mesmo ostracizada, desde logo na escola. Como não existe nenhuma estratégia de democratização e aproximação cultural, é lógico que toda a gente faça um bicho de sete cabeças, começando desde logo a fazer contas de somar e dividir, sempre que começamos a falar de Educação Artística e raramente chegamos ao ponto fundamental que seria a Educação para as Artes, que nada tem a ver com formar artistas, mas sim públicos.
Por isso, o que se faz atualmente, em grande parte, é mais ou menos o mesmo que colocar um anestesista a fazer um transplante de pulmão: uma operação rara, dirigida por quem não tem habilitações nenhumas para isso. Além do embrutecimento geral de crianças e adultos e do afastamento coletivo das práticas culturais, entre outras coisas, isto faz com que: 1) o ensino e o contacto artístico sejam sempre remetidos para pesquisas individuais, como trabalhos de casa nos tempos (pouco) livres; 2) existam manuais que mandam fazer coisas impossíveis, como visitas virtuais ao Museu do Louvre, que na verdade estão limitadas à ala egípcia, para escolher uma pintura para levar e apresentar na aula.
Quem não sabe aquilo que está a fazer ou não tem nenhuma formação para desempenhar o papel ou a função que lhe incumbem, arrisca-se a cometer um crime. Neste caso, a forma como as artes são abordadas nas escolas, é criminosa. A forma como o tema nunca é incluído nas prioridades educativas ministeriais, também. As disrupturas sociais que isso causa estão à vista: intolerâncias; a cultura da espectacularização como mero guia de entretenimento; os ódios e preconceitos, dos meios sociais até às discussões artísticas, onde os argumentos se limitam a lugares-comuns como "gosto", "não gosto" e "os gostos não se discutem". Basta ver-se o sururu em torno dos nomeados dos óscares.
À margem disso, não esqueçamos também a forma como muitos professores lecionam ou aplicam os programas curriculares, sobrecarregando e saturando o ambiente extracurricular de atividades complexas como: pesquisar obras acerca de Salvador Dali, na terceira classe, para apresentar na aula, sem nunca sequer se ter ensinado aos alunos: como se pesquisam fontes, onde e quais são relevantes, como confirmar contrainformação, etc., etc., etc.. Ou sem se fazer sequer a pergunta fundamental: têm internet, computador e alguém em casa que vos acompanhe nestes trabalhos? Basta que um não tenha para criarmos uma desigualdade.
Nem tudo é responsabilidade da escola, evidentemente. Mas da mesma forma que esta não deve e é incapaz de se substituir às relações de afeto, também não pode descurar o papel fundamental que desempenha na equidade social e na formação da identidade e emancipação do indivíduo social, fazendo depender o acesso à cultura das capacidades, formação, poder económico e conhecimento das famílias (como até 1974). Além disso, a transmissão do conhecimento não devia funcionar como uma castração do espaço individual de lazer, diversão e descanso, numa catadupa de trabalhos e responsabilidades que pretendem equiparar as crianças aos adultos.
Agora, e se uma criança escolher levar “A Liberdade Guiando O Povo”, do Eugène Delacroix e o “Sonho Causado Pelo Voo De Uma Abelha Ao Redor De Uma Romã Um Segundo Antes De Acordar” do Salvador Dali, com as maminhas das meninas ao léu, para falar de revoluções sangrentas, sonhos, fertilidade e sensualidade na sala de aula, o que é que os pais dos outros meninos vão dizer?