A VONTADE DO POVO É SOBERANA
1 - A vontade do povo é superior a qualquer argumento histórico, qualquer lei e é a ela que se deve submeter qualquer constituição, obedecendo à sua livre autodeterminação, independência e desenvolvimento. Qualquer identidade nacional é um processo construído, mutável e sofrível de evoluir, afinal, foi através dessas clivagens, convergências e divergências que se formaram impérios, potências, países, regiões e outros países e comunidades. A construção social e cultural, juntamente com a vontade expressa de forma livre, devem ser a bússola de cada Estado.
2 - É precisamente graças a isso que temos uma constante reorganização do mundo, das suas fronteiras e representações. Uma grande parte, se não a amiroa, dos 193 países que hoje pertencem à ONU nem sequer exista há 100 anos e os que existiam poucos eram democráticos ou repúblicas. O que não impede que hoje tenham uma representação própria, uma autonomia e independência económica e social, leis e constituições próprias e uma cultura estabelecida e reconhecida pela vontade popular.
3 - Sobrepor argumentos legais ou até mesmo históricos, num embate retórico entre a melhor versão da realidade e avaliações distorcidas da realidade percepcionada por cada um, é o mesmo tipo de retórica que se opunha à divisão da ex-União Soviética, à dissolução dos impérios europeus e à independência das ex-colónias americanas, africanas e asiáticas.
4 - Nem toda a ideia de nacionalidade tem objetiva ou obrigatoriamente um objetivo isolacionista ou de segregação étnica. Por isso, confundir o apelo de uma região e da sua população à sua autonomia e independência, por via do sufrágio direto e universal, com laivos de fascismo é indecoroso e perverso. Além de uma falácia.
5 - Nesse sentido, os argumentos nacionalistas, em prol de uma Espanha indivisível, que dizem que os pedidos de independência da Catalunha representam apenas uma minoria, que são um golpe das elites corruptas da região e que não têm base história, que referem um clima de perseguição aos opositores, são em si mesmos contraditórios. Vendo as multidões na rua, e as sondagens mais recentes, é difícil alegar que estamos a falar de uma minoria. Mas, assim sendo, por que não legislar um referendo, à imagem do que aconteceu com a Escócia? Se a maioria se expressar a Catalunha permanecerá onde está.
7 - Se a Espanha é o império e a nação que se imagina, não há porquê temer um resultado negativo, pelo contrário, deve-se conquistar a paz social através de uma solução política que permita à maioria silenciosa manifestar-se livremente. Por outro lado, se o medo é a instigação ao desmoronamento regional, temendo a insurgência de outras regiões com aspirações semelhantes à Catalunha, então talvez haja mais fundamentos históricos e económicos a favor dessa independência, do que aqueles que se querem admitir atualmente.
8 - As imagens que nos chegam sobre a atuação policial durante as marchas pacíficas (fundamentalmente constituídas por famílias), em oposição a uma narrativa de distúrbios provocados pela violência, são o suficiente para falar de repressão. Segundo as notícias, cerca de 600 pessoas atingidas na cabeça por balas de borracha e latas de gás, e quatro pessoas que perderam um olho. Acções violentas e oportunistas existem em todas as manifestações, até no futebol. A polícia está treinada para repeli-las, provocando a dispersão, não para reprimir a população ou jornalistas. É esse tipo de abusos que diminui o Estado de Direito.
9 - O conflito entre direitos fundamentais é sempre resolvido através de um processo de pesos e medidas, caso a caso. No caso da liberdade individual de gestão própria, o direito alheio de possuir um território não deve sobrepor-se à vontade individual daqueles que nele habitam. A discussão é a mesma na Catalunha, que era em Timor, que é em Hong Kong, que é na Escócia, na Irlanda ou na Crimeia. Assim como foi noutros impérios, que também se achavam indivisíveis, cada um dentro do seu contexto próprio.
Seja como for, qualquer que seja a solução imediata ou futura que não passe por uma negociação democrática em vez de uma afronta e um desprezo pelas manifestações não deixa de ser uma diminuição da vontade popular e uma instigação à violência. A narrativa das elites tornou-ne numa mentira quando essas supostas elites foram presas ou fugiram (covardemente) e são as pessoas que estão na rua. Assim como acontece também noutros locais, atualmente, como na Venezuela, Chile, Equador, Líbano, Rojava, Lima e Caxemira.