A mentira
A maior mentira que nos contam quando somos crianças é que o mundo está pronto e acabado. Como se fosse possível resumir o mundo a um conjunto mínimo de cosias e categorias, mais ou menos concretas, de tudo aquilo que existe: pronto, aqui está o mundo. Aqui estão as galáxias, os planetas, o nosso planeta, os continentes, os rios, os lagos, os países, os animais, a tabela periódica e os humanos. Eles têm relações e profissões, escolhe uma de cada e vai, vai viver no mundo e ser alguém.
Mas o mundo está inacabado. Faltam galáxias e planetas aos quais ainda não demos nomes e a que não podemos dar nomes porque não sonhamos que eles existam; faltam rios que desapareceram e surgem lagos que criamos; e ainda há continentes que não explorámos, a bem dos animais que lá viverão, de certo desconhecidos de nós e nós deles; faltam animais que sumiram, e animais que não descobrimos, e animais que ainda não descobrimos que já sumiram, há muito tempo; faltam elementos na tabela periódica, que não é capaz de decifrar a partícula de que é feita a entropia que faz do tempo uma dinâmica de tempos e medidas irreversíveis; faltam seres humanos, tão diferentes e complexos quando as relações e as profissões, as histórias e as fantasias que cada um deles tem, cria, vive e deseja. Falta tanta coisa ao mundo que parece ser impossível que algum dia esteja acabado, pronto.
Como todas as mentiras, mesmo as que têm pernas curtas, é possível acreditarmos nelas inocentemente ou desejar tanto que elas sejam verdadeiras que chegamos a sentir verdadeiramente a plenitude de um mundo inexistente. E deixamos de sentir a dor dos outros à nossa frente, deixamos de ver o mundo e a gente que nele sofre incessantemente. É nessa repetição, de que o mundo está completo desde o dia em que nascemos, desde a primeira aula que tivemos ou desde a última lição que recebemos, que nos vamos tornando mais incompletos, inseguros e medíocres, porque não deixamos entrar em nós o tanto mundo que não nos contaram que existia. E porque acreditamos que não é possível fazer mais nada, desistimos de criar pontes, plantar sementes, colher frutos, vigiar os céus, auscultar as ondas e descobrir nas conchas do mar um novo som que nela se reproduz e nunca ninguém ouviu e ouvirá, além de nós, naquele momento, graças à ilusão do tempo e do vento...