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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

A ascensão dos idiotas

O erro faz parte da nossa aprendizagem. Estarmos enganados em determinado assunto, ou convicção, não nos diminui por si só. Por outro lado, a busca pelo conhecimento só nos engrandece. Grave mesmo é quando a ignorância se transforma numa mentira deliberada, espalhando-se como uma verdade ideológica, com o intuito de legitimar políticas, abusos, preconceitos e crenças. A prepósito disso escrevi um texto intitulado “Alerta Sexta-Feira Negra”, a 27 de novembro de 2015, onde abordo a proliferação da ignorância em paralelo com os comportamentos de manada que conduzem às promoções de dias comerciais, como a Sexta-Feira Negra (Black Friday).

© Tom Toro

© Cartoon de © Tom Toro, The New Yorker, com a legenda:

Apenas isto: factos alternativos não são factos. São mentiras. Eu sou um delinquente de 10 anos e até eu sei isso”. 

 

Passado pouco mais de um ano, a ignorância ganhou o estatuto de “Pós-Verdade”, Donald Trump passou de candidato às primárias americanas, a Presidente dos EUA e o seu gabinete não só inventa “Factos Alternativos” (como falsos atentados) como cavalga sobre a ignorância geral acerca de determinados temas e matérias, incluindo os direitos civis. Da mesma forma que Le Pen o tenta fazer em França. Estamos a assistir à legitimação geral da idiotice, muitas vezes proporcionada pelos principais media. Mas, será que estamos a agir corretamente na tentativa de combater esta ignorância? Recupero aqui a minha crónica de 2015:

 

A ignorância é gratuita e hoje está em promoção: leve o dobro. Na “História da Sexualidade”, pela página 64, Foucault diz que “a sede da dominação não reside naquele que fala (pois é ele quem está conscrito), mas naquele que ouve e nada diz”, ou seja, “não naquele que sabe e que responde, mas naquele que pergunta o que é suposto não saber”. O que significa que, à imagem dos diálogos de Sócrates, ou da confissão católica-romana, e mesmo na prática do Direito, a melhor forma de desmontar a ignorância de quem afirma ter grandes certezas passa por: a) pedir para explicar a fundo os seus argumentos; b) pedir para que enumere mais dois ou três argumentos acerca do assunto a que se refere. Numa altura em que tanta gente resolve despejar teorias, argumentos e factos sobre a atualidade, ser ouvinte pode ser um talento.

 

É certo que nem sempre a filosofia acerta. Mas costuma ser uma porta que desvenda vários caminhos. Além disso, Foucault afirma ainda no seu curso aberto de “Aulas Sobre a Vontade de Saber”, que a vontade de saber é em si mesma um conhecimento. Pois isso pressupõe um reconhecimento do que desconhecemos. Contudo, a Internet parece ter disseminado o “efeito de Dunning-Kruger”: quando a ignorância de alguém é tão grande que acredita dominar uma área que mal conhece.

 

Isto aplica-se a vários campos. Desde a política, às artes, passando pelo civismo e numa catadupa de preconceitos e discriminações recorrentes. Mesmo quando falamos de Editores de jornais, que nem o próprio Código Deontológico conhecem. Algo perfeitamente documentado no livro “O Gorila Invisível”, de Christopher Chabris e Daniel Simons. É fácil perceber porquê, pois a maioria das pessoas confunde a familiaridade com determinado assunto, tema ou objeto, com a profundidade sobre o mesmo. Tendendo a extrapolar a partir do seu (des)conhecimento – quem sabe se por falta de humildade – e a generalizar a partir da sua ignorância. Isto sim é que é ser-se radical.

 

Como explica Eli Pariser, autor do livro “O Filtro Invisível”, a ignorância surge através do reforço positivo de uma ideia que já tínhamos. Visto que temos uma enorme dificuldade em ler artigos e opiniões que sejam contrárias às nossas preoposições, isto faz com que alguém acredite mais facilmente, ou divulgue e partilhe, uma mentira ou informação errada com a qual concorda. Desta forma, muita gente despeja a primeira coisa que lhe vem à cabeça sem pensar duas vezes se é verdadeiro ou não, se faz sentido ou nem por isso. Pois, como refere Daniel Kahneman em “Rápido e Devagar”, associamos, erradamente, a facilidade com que nos lembramos de algo ao facto de ser verdadeiro, mesmo não sendo. Esquecendo, como revelou António Damásio n’ “O Erro De Descartes”, sobre os “marcadores somáticos”, que todas as nossas memórias e decisões estão associadas a um fator emocional.

 

Por isso, da mesma forma que é má ideia estourar a carteira em promoções ou campanhas de marketing enganosas na última sexta-feira de novembro, também nunca é bom responder, reagir e discutir sob a impulsividade de um momento ou ideia. Muito menos, alimentar discussões ou trocas de galhardetes na internet. Pois, assim como Cecília Giménez achava (e acha) que estava a fazer um grande trabalho de restauro na Igreja de Borja, em 2013, o ignorante nato não sabe o tamanho daquilo que desconhece e torna-se facilmente confundível e reconhecível. Como um xenófobo, racista, machista e fanático clubístico que nunca mudará de equipa. Pois a ignorância é livre e gratuita e, nos dias que correm, está em saldos. Propiciando uma “sexta-feira negra” constante a quem se cruza no seu caminho.