O que guardamos cá dentro!
Enquanto caminhava sozinho, junto à brisa salgada que lhe tocava suavemente na face transpirada, húmida de tanto suor, escurecida e descuidada, viu lá ao fundo o sol pondo-se, com tanta tranquilidade quanto a que ele possuía no interior do seu coração, vermelho apaixonado, esperançoso esverdeado e calmo, calmo descansado.
O Sol punha-se, escondia-se para lá do esvoaçar das gaivotas, que mesmo poucas, faziam um barulho enorme, lutavam por um naco de peixe uma ultima presa que, por mais descuidada que os outros, se deixe apanhar, enquanto que ele olha, caminhando junto ás dunas, mas sem lhes tocar, caminhando e olhando o mar, mas seus olhos não se fixam nas ondas, nem pouco mais ou menos nas ondas que vêm e vão, uma depois da outra sem nunca fazer uma pausa para descansar, uma pausa para dormir, seguidas e continuas, uma a seguir à outra. Mas ele procura algo para lá do Sol poente, bem lá do outro lado do mundo, quiçá algo que tenha perdido, algo que nunca tenha encontrado, quem sabe alguma coisa que nunca viu, tocou, sentiu, mas que deseja profundamente.
Sem se aperceber também ele se torna numa onda, sem pausas, para comer, descansar, sem interrupções, vai e vem, segue o seu caminho, embora não saiba ao certo onde este o irá conduzir, ele não é capaz de interromper a rotina, mas mesmo que quisera nunca seria capaz, já não é ele que controla as regras da partida, se é que assim podemos chamar à vida.
Fisicamente desinteressante, nem vale a pena tecer comentários, até os trapos dele se envergonham, mas, que culpa tem o corpo, se na boca nada entra? Ninguém o conhece, mas quem o vê, observando e caminhando sobre a praia, sabe quem ele é, embora ninguém queira conhecer a sua história, todos sabem que ele existe. Simplesmente preferem esquece-lo todos os dias, para que no dia seguinte ele volte a ser um desconhecido, todos os dias, sempre que ali passarem, sempre que nos seus olhos olharem, sempre que fiquem horrivelmente aterrorizados sempre que ele lhes estenda a mão, e como a qualquer outro desconhecido se faz, lançasse-lhe uma moeda sem mesmo perguntar ou perceber qual o objectivo daquela mão, grande, suja, velha, enrugada e calejada que se estende na busca de amparo.
Mas os que ali passam preferem evitar amparo, preferem dar o que demais têm, o que pensam ser melhor para quem, dias e dias seguidos passa para lá e para cá, pôr-do-sol atrás de pôr-do-sol, dias e dias, mirando, cheirando, acariciando a espuma das águas que tocam na areia, suave, quente e branca das praias do outro lado do mundo.
Ele é sem dúvida um homem muito alto. Consegue ver o que nenhum dos que ali passam constantemente, à sua imagem, conseguem ver, ele consegue tocar onde nenhum dos outros que o miram continuamente conseguem ver, e sabe, que um dia será pequeno, capaz de, suavemente entrar, onde poucos sonham entrar, no coração de alguém.
Quem quereria, ao passar na rua, abraçado ao seu amor, aos seus pais, na sua corrida matinal, no seu passeio de bicicleta parar para abraçar um homem mal parecido, perdido no areal, dando ares de quase moribundo e mal lavado?
Esse homem não quer dinheiro para comprar roupas, não quer comia para lavar o seu estômago, nem quer que lhe dêem uma cama, uma casa ou um abrigo, ele esta bem ali, naquele passeio, para lá e para cá, num movimento pouco rápido, mas continuo, pouco fugaz, mas eficaz, um movimento de pernas, braços, corpo e alma, este homem só quer que parem, os que ali passam, que parem para o ver, para o ouvirem, este homem só quer dizer:
Ali, foi ali, bem no centro do mar
que vi seu barco naufragar,
por favor, tens que parar
a partir de hoje se queres ver
o que só eu posso sentir
tens que me ouvir,
tens que me querer.
Para que possas viver
Dá-me a tua mão deixa-te guiar.
Todos sabem que este homem existe, todos o querem evitar, poucos lhe dão ouvidos e ninguém o quer transportar. Dentro de cada um de nós, está ele pronto a falar, a dizer, que só nos quer ajudar.