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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Cosmopolis

Still of Robert Pattinson in Cosmopolis

 © 2012 - Prospero Pictures 


 

“I need a haircut”, é como começa o filme de David Cronenberg, “Cosmopolis”. Uma adaptação do livro homónimo de Don DeLillo. Comecemos então por esse ponto. Eu não li o livro, mas mesmo que o tivesse feito considero isso irrelevante quando falamos de cinema. Pois, o que é realmente uma adaptação? Não será mais do que uma apropriação de um guião. Por isso, dizer que um filme está muito ou pouco fiel ao livro que adapta nada diz realmente sobre o filme isto porque, em termos analíticos, seria o mesmo que dizer que um filme segue ou não à risca as linhas do guião. Então esqueça-se que este filme é uma adaptação. É um filme, uma obra de arte, e isso deve valer por si.

 

Neste filme resume-se tudo à incerteza da realidade acerca do mundo em que vivemos, um corte de cabelo e um fungo mágico no pé! Afinal, quem são os loucos, em que realidades pensamos que vivemos, o que é que as nossas roupas, hábitos, obsessões e medos dizem de nós? Há uma dicotomia entre a filosofia acerca dos tempos, do tempo, da materialidade e funcionalidade do tempo contra o pragmatismo inerente à nossa condição, à humanidade, ao próprio tempo. “We're people in the world. We need to eat and talk."

 

Como vértice máximo dessa bifurcação temos a personagem principal, Eric Packer (Robert Pattinson), inconsequente mas perspicaz, capaz de antecipar o futuro, as reações das pessoas e, sobretudo, os movimentos bolsistas. Capaz de antever o futuro, de viver no futuro em detrimento do presente que não existe e sem querer saber do passado que é tudo o que é palpável. Mas, no fundo, incapaz de controlar os seus impulsos autodestrutivos, agindo de forma incongruente e pouco razoável. Ele próprio admite que não gosta de ser razoável. Ele mesmo procura a sua queda, ele próprio se assume como incapaz de sentir algo de novo, agindo de forma contraditória a muitas das conclusões que tira, do futuro que visualiza. Se a violência necessita de uma justificação ele age de forma injustificada, sem remorsos ou acervos de consciência.

 

Mais do que o capitalismo, da tecnologia como motor desse mesmo, o realizador leva-nos a pensar na sociedade como organismo mutável mas previsível e decadente, não só por ação dos interesses superiores e capitalistas mas também, e sobretudo, pela forma impassível como todos vivemos dentro dela. Por isso Eric nos aparece grande parte do filme em contra picado, porque está num nível superior não só de poder económico mas de consciência daquilo em que vive. Embora deslocado de uma realidade mundana, protegido dentro da redoma de uma limusina com tecnologia altamente avançada, é essa distância do mundo vivencial do dia-a-dia que lhe permite analisar de forma analítica aquilo que se passa na rua, à sua volta, fora da sua limusina. Claro que, com o desenrolar tudo se vai alterando.

 

Há também, como verso, uma personagem que o consegue colocar sempre em xeque, a sua mulher de conveniência, Elise Shifrin (Sarah Gadon), onde se invertem sempre os papéis e, se não uma inferioridade, há um equiparar de forças e análises. Com ela, Eric pouco mais consegue ser do que o que menos gosta, razoável, tendo que mentir por diversas vezes para tentar fugir às conclusões que Elise tira apenas de olhar para si, para as suas roupas, cheirando-o, referindo as peças de roupa que lhe vão faltando a cada visita.

 

No fundo, este não é um filme com respostas. É sim uma obra cheia de perguntas e pontos de interrogação, de cenas surrealistas e diálogos filosóficos e a dificuldade e estranheza que causa na sua receção é o seu maior trunfo. Um filme que mostra muito mais do que se pode ver, que nos faz levar incertezas para casa e nos obriga a vê-lo de novo, a falar sobre ele e a indagar a nossa vida com as mesmas questões. Nunca esquecendo nem confundindo que aquela é a realidade do filme, da fantasia, do contexto escolhido para posicionar as personagens e não a nossa.

 

Assim, de forma interrogativa, termina com um xeque-mate a Eric por parte de um ex-funcionário seu que não tem mais nada para lhe dar do que a certeza de que a sua visão precisa das coisas não passa de um incerteza.