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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

No Pátio

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Não era um pátio. Era o Largo do Poço do Concelho, onde ficava a casa onde os meus avós moravam e viveram durante cinquenta anos, nas traseiras da casa 'grande' dos senhorios. Quando o sr. General vinha passar as férias, era proibido brincar no quintal ou deixar alguma coisa desarrumada, para evitar provocar os maus humores do dono da casa. Mas quando ele não estava, as outras cinquenta semanas do ano, era como se os meus avós fossem os verdadeiros reis do castelo.


Era assim que dizíamos quando nos perguntavam onde eles viviam, no castelo. Como se fossem efectivamente donos de todo o reino e não apenas uns dos habitantes da velha aldeia muralha que resistia e resiste, apesar do tempo, para lá do tempo, das paredes de pedra e do chão que entretanto foi calcetado, arrancando as raízes dos velhos pinheiros, que eram sombra dos churrascos, abrigo dos cachorros e madeira para a fogueira do Natal.

O largo, para onde davam as traseiras da casa onde moravam os meus avós, uma rua comprida na desembocadura de uma pequena azinhaga, terminava num poço de água fechado, onde apesar das proibições, entre nós, irmãos e primos, testavamos a coragem de cada um saltitando por cima da tampa de cimento trêmula e insegura. Na verdade, temíamos mais a surra dos adultos, caso descobrissem, do que a queda no abismo de água negra que nos parecia uma porta ao fim do mundo.

O Medo

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Na verdade, o grande medo dos objetores de consciência contra a "cidadania" é que os filhos descubram a hipocrisia das mentiras que muitos deles vivem em casa. É que as crianças descubram que afinal os pais, os tios, os familiares e outros conhecidos, próximos ou não da família, são homofóbicos, machistas, racistas e xenófobos e que isso está errada. Ou pior, que descubram, porventura, que mexer no corpo de uma mulher sem o seu consentimento e reduzir as relações com a ela a isso, é assédio e no caso de ser uma criança, é pedofilia. Ou que descubram que talvez aquela pessoa que sempre ouviu ser diabolizada em casa, afinal nunca fez mal nenhum e talvez seja até mais correta que os pais, que a discriminam simplesmente por se ter emancipado, por ser estrangeiro/a, negro/a, mulher, gay, pobre, ou todas elas juntas. Talvez o medo deles seja que as crianças aprendam que determinadas coisas devem ser feitas não apenas porque deus manda, o padre manda, o papa disse, ou os pais mandaram, mas sim pelo bem coletivo da sociedade, por solidariedade, por justiça social.

 

Têm medo que os filhos descubram que as vacinas não são uma invenção satânica, mas um contrato social de responsabilidade coletiva cuja eficácia depende do empenho de todos, ou que, por isso mesmo, certas liberdades individuais devem e podem ser suprimidas em confronto com bens coletivos superiores, como usar máscara. Ao contrário de outras questões, que só dizem respeito a cada um e a cada qual, como a sua sexualidade, identidade de gênero e religião, e que por isso o estado, os pais, o padre ou o papa, não têm autoridade nenhuma, nem legitimidade, moral ou ética, para se impor ou travar o direito de se assumirem e viverem como são, com quem querem, como quiserem.

 

No fundo, têm medo que os filhos percam o medo de sair das caixinhas de pandora onde os querem encerrar, formando-os à imagem do anacronismo das suas ideias e pensamentos para que se tornem tão incapazes quanto eles. Medo, de que um dia os filhos questionem a autoridade institucional que legitima todo o tipo de abusos e absurdos e arrisquem construir um mundo melhor, igualitário e mais justo, no qual eles não têm lugar.

 

Não se preocupem, quem faz isso não são as aulas de cidadania sozinhas, mas sim a consciência de classe.