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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

A mentira

© João M. Pereirinha

A maior mentira que nos contam quando somos crianças é que o mundo está pronto e acabado. Como se fosse possível resumir o mundo a um conjunto mínimo de cosias e categorias, mais ou menos concretas, de tudo aquilo que existe: pronto, aqui está o mundo. Aqui estão as galáxias, os planetas, o nosso planeta, os continentes, os rios, os lagos, os países, os animais, a tabela periódica e os humanos. Eles têm relações e profissões, escolhe uma de cada e vai, vai viver no mundo e ser alguém.

 

Mas o mundo está inacabado. Faltam galáxias e planetas aos quais ainda não demos nomes e a que não podemos dar nomes porque não sonhamos que eles existam; faltam rios que desapareceram e surgem lagos que criamos; e ainda há continentes que não explorámos, a bem dos animais que lá viverão, de certo desconhecidos de nós e nós deles; faltam animais que sumiram, e animais que não descobrimos, e animais que ainda não descobrimos que já sumiram, há muito tempo; faltam elementos na tabela periódica, que não é capaz de decifrar a partícula de que é feita a entropia que faz do tempo uma dinâmica de tempos e medidas irreversíveis; faltam seres humanos, tão diferentes e complexos quando as relações e as profissões, as histórias e as fantasias que cada um deles tem, cria, vive e deseja. Falta tanta coisa ao mundo que parece ser impossível que algum dia esteja acabado, pronto.

 

Como todas as mentiras, mesmo as que têm pernas curtas, é possível acreditarmos nelas inocentemente ou desejar tanto que elas sejam verdadeiras que chegamos a sentir verdadeiramente a plenitude de um mundo inexistente. E deixamos de sentir a dor dos outros à nossa frente, deixamos de ver o mundo e a gente que nele sofre incessantemente. É nessa repetição, de que o mundo está completo desde o dia em que nascemos, desde a primeira aula que tivemos ou desde a última lição que recebemos, que nos vamos tornando mais incompletos, inseguros e medíocres, porque não deixamos entrar em nós o tanto mundo que não nos contaram que existia. E porque acreditamos que não é possível fazer mais nada, desistimos de criar pontes, plantar sementes, colher frutos, vigiar os céus, auscultar as ondas e descobrir nas conchas do mar um novo som que nela se reproduz e nunca ninguém ouviu e ouvirá, além de nós, naquele momento, graças à ilusão do tempo e do vento...

30 anos

30

Trinta anos e um dia. Eu nunca gostei de fazer anos. Talvez seja mais uma mania do que uma convicção, mas com o tempo habituei-me a ignorar a passagem do tempo e a menosprezar a sua inevitabilidade. Por fazer anos em Agosto, no meio das férias de verão, poucas vezes tive direito a festas e raramente tive o privilégio de poder contar com os meus colegas de turma, amigos ou não, levados até lá pelos pais, reunidos à volta da mesa, ansiosos para cantar os parabéns, ver-me soprar as velas e provar uma fatia de bolo. No meu aniversário toda a gente estava de férias. Ainda assim, lembro-me de um verão em que os meus pais mandaram fazer um bolo em forma de Pikachu e reunimos todos os meus primos, os de longe e os de perto, em casa dos meus avós. Ainda guardo duas bonitas fotografias desse dia, uma onde a minha mana está imensamente feliz por poder soprar as velas comigo. Outra, onde estou eu, ela e todos os meus primos lado a lado, junto às muralhas, com o meu avô no meio. Tenho saudades de ser criança.

 

Não gosto da passagem do tempo. Normalmente, costumava assinalar esta data com uma citação sobre a efemeridade da vida, a minha preferida é do Saramago, com a qual aproveitava para agradecer todas as mensagens de aniversário que recebi ao longo do dia. Habituei-me a ser o mais novo dos círculos em que estava inserido e quase sempre isso era bom sinal. Mas com o passar do tempo começa a haver alguém mais novo, e quando isso não acontece nem sempre é bom sinal. Porém, às vezes a idade não se reflete externa ou internamente. E lá vou recebendo um "menino", um "não parece nada", um "guri", um "gaiato". Coisas que sempre usei como armadura, como elogio, como um agrado. 

 

Talvez não goste da passagem do tempo por sentir que ela me aproxima da morte. Afinal, fazer anos nada mais é do que assinalar que ainda estamos vivos, e não existe muito mérito nisso. Quando nasci, a esperança média de vida no meu país era de 70 anos para os homens e 77, 7 para as mulheres. Hoje, os homens igualaram essa marca e as mulheres subiram para 83 anos. Já no país onde vivo, para quem tem 30 anos a expectativa de vida é 78,7 anos. O que não significa que não possa ser abreviada. Como tem sido ultimamente. Há dias dei por mim a pensar que as pessoas só deviam morrer quando estivessem cansadas de viver, de facto, satisfeitas pelo que viveram. Talvez nunca me sinta assim, satisfeito. 

 

Contudo, posso dizer que me sinto muito feliz, enfim chegado aos trinta. Pode ser clichê, pode ser um mero devaneio, mas da mesma forma que o tempo passa por nós, nós também passamos por ele e vamos guardando as marcas da vida que ele deixa em nós. Algumas delas refletidas nas mensagens e nos gestos, nos sentimentos e nos afetos que recebemos, nas lutas que escolhemos travar, naquilo que construímos e no que aprendemos a desconstruir em nós mesmos. E por mais que seja só um clichê, a passagem dos anos que festejamos nestas datas não deixa de ser um ótimo ponto de partida para celebrar e agradecer por cada uma dessas coisas. 

 

Obrigado pelas mensagens e carinho de todos e cada um. Obrigado pelas surpresas. E sobretudo pelo amor daqueles que fazem de mim melhor pessoa, todos os dias e a cada novo ciclo! 

 

Com amor, 

João.

Temos que barrar a marcha dos fascistas

© NUNO SARAIVA

Os fascistas são os mesmos, os tempos é que mudaram. Há um ano pouca importância se dava à extrema-direita em Portugal, à parte de alguma satirização que se fazia com um partido que parecia reunir todo o tipo de tresloucados, em torno de uma figura histriônica, saída das fileiras de um dos maiores partidos da direita, embalada pelos programas de futebol, envolta em ilegalidades, com um discurso preconceituoso, racista, machista, xenófobo, homofóbico e ultraliberal, que queria "expulsar os estrangeiros" e "privatizar" tudo. No entanto, as grandes preocupações da "opinião pública" eram a maioria absoluta ou não do PS e o apoio ou não do PSD, por entre as alegações de interferência na RTP ou a greve de camionistas (cujo promotor também se aliou ao Chega) que levou muita gente a encher galões de gazolina. A bomba do fascismo estava armada e explodiu após as eleições, com a entrada de um partido de extrema-direita no parlamento. De lá para cá, a marcha lenta dos fascistas acelerou o passo. 

 

Desde então, os casos de abuso multiplicaram-se um pouco por todo o país, em particular o racismo, a xenofobia e a homofobia. Uma consequência direta da legitimação criada pela tomada de posse de um deputado que desde início sequestrou o espaço público em torno dos seus ataques racistas constantes, imitados entretanto por outros membros das fileiras do CDS, do PSD e da IL, cuja ligação, sabe-se agora, é mais do que retórica e estende-se inclusive aos patrocinadores e apoios empresariais que reúnem à sua volta. Parece que muito mais é o que os une do que aquilo que os separa. O próprio Rui Rio (com o seu ar de aparente moderação) admite a possibilidade de união com o Chega, se ele se tornar "mais moderado"...

 

Entretanto o Chega e o seu deputado único têm mostrado a sua moderação, em ações como: sugerir que uma deputada seja expulsa do país por ser negra; sugerir medidas de isolamento específico para a comunidade cigana; fazer cumprimentos nazis em comícios ou em manifestações contra a luta antirracista (apesar de Mário Machado ter pedido para que não se mostrassem suásticas); e a filiação de nazis nas suas fileiras; ameaçar de censura o Twitter; ameaçar a esquerda de convocar contra-manifestações sempre que ela sair à rua; ser contra as cerimónias do 25 de Abril; endossar e acolher ameaças a deputados antirracistas; afirmar que é um enviado de Deus; ou sugerir a castração como método de punição penal. 

 

Enfim, como se não bastasse, os seus adeptos e apoiantes também não se ficam atrás com coisas como: matar um ator com quatro tiros, por ser negro, e admitir essa atitude; espancar uma mulher negra, porque a filha não transportava o passe do autocarro, que é gratuito; fazer listas de pessoas que denunciam abusos policiais e expô-las, identificando-as, numa página de polícias anónimos; espancar um cabo-verdiano até à morte à saída de uma discoteca; a formação de novos partidos de extrema-direita, mas com os mesmos protagonistas (alguns deles condenados por assassinar uma pessoa); uma onda crescente de xenofobia e atitudes racistas; fazer graffiti com frases racistas; vigílias ao estilo "Ku Klux Klan" em frente à sede da SOS Racismo; ou o envio de e-mails de ameaças a deputados e às suas famílias para que abandonem o Parlamento. Já para não falar de forças de segurança que processam um jornal e um cartoonista. De facto, os fascistas não precisam de chegar ao poder para influenciar as sociedades. Como movimento que se pretende de massas, eles tendem por empurrar a sociedade para o abismo, mesmo antes de tomar as redias do poder... Não é preciso um grande número de fascistas para soltar o fascismo. 

 

E sempre cá andaram, embora de forma enrustida e com medo de se assumir, seja pela rejeição social ou pela falta de respaldo mediático. Coisas que não são indiferentes à eleição de alguém que agrega toda a ideologia de extrema-direita no Parlamento. Mas sempre foi assim, os fascistas sempre chegaram ao poder de forma legítima, endossados pelos liberais, perante a passividade dos sociais-democratas, que não os viam como ameaça ou que os preferiram aos socialistas ou comunistas, por achar que seriam controláveis. Não são, o seu projeto consiste numa destruição indomável dos pilares da sociedade e por isso se empenham tanto numa narrativa que visa diabolizar as forças antifascistas, antirracistas e o socialismo, o comunismo, o feminismo e qualquer ideia de poder popular igualitário e solidário.

 

Porém, não basta saber disso para os dissuadir ou diminuir a sua capacidade de crescer, que muitas vezes, nem sempre, ganha espaço entre a classe trabalhadora, muitas vezes despolitizada e frustrada pela falta de respostas e soluções no espectro radical da esquerda; ou sequestrada pela retórica da elite fascista que se apoia no nacionalismo, no militarismo e numa masculinidade pedante que pretende roubar a retórica coletivista da esquerda, por norma desagregada, e por vezes perdida no sectarismo e no caciquismo de certas lideranças. Não por acaso, muitos dos focos de crescimento da extrema-direita se encontram em localidades tidas como refúgios comunistas ou socialistas, onde a utopia ou a ideologia revolucionária foram enterradas, como um machado de guerra que cedeu espaço à relação de forças que excluem uns e proveligiam outros.

 

Outra coisa que favorece veementemente o crescimento do fascismos é a teoria do "mercado de ideias" (popularizada pelo juiz da Suprema Corte dos EUA, Oliver Wendell Holmes) que transforma a fala, o discurso e a liberdade de expressão, numa espécie de "commodities", cujo alcance é controlado pelas empresas de tecnologia, donas das redes sociais, onde "todos têm direito à sua opinião", mas cuja importância é bastante estratificada, o que demonstra as relações de poder com que lidamos hoje. Não por acaso, a maioria desses grupos fascistas, no mundo e também em Portugal, se reúnem, surgem e multiplicam, em torno de grupos de Facebook, vídeos de YouTube, chats de What'sApp, redes de Twitter, notícias falsas e robôs e manadas de haters.

 

Precisamos, portanto, de uma organização antifascista que se una em torno de um ideal anti-autoritarismo, antirracista, contra a xenofobia, o machismo, em prol de um feminismo revolucionário, em torno de uma alternativa socialista e que seja capaz de rejeitar frontalmente qualquer tipo de tolerância com os intolerantes, que lhes rejeite espaço, que lhes roube protagismo e que, se necessário, invista na coragem física para os barrar no espaço público. Parece demais? Bom, nada é demais em prol da vida, a vida que uns vêm ameaça todos os dias e que outros perderam para sempre, apenas no último ano. Uma vida de abusos que muitos vivem diariamente e na qual não se podem dar ao luxo da moderação, a mesma que resvala sempre na ascenção de quem defende o fim do direito à vida, existência e igualdade entre todos.

 

Para derrotar o fascismo, todos os dias e a longo prazo, precisamos atacar os seus pilares, que assentam tanto na supremacia branca, como no mito da "meritocracia" (o ópio das elites), na heteronormatividade, na dominação de classe, no colonialismo, no imperialismo económico. Precisamos de uma alternativa revolucionária socialista, anti-autoritária, contra a pobreza, as crises, as desigualdades, os conflitos e agora a pandemia, que alimentam o fascismo. Da mesma forma que precisamos entender que não é possível vencer os fascistas em eleições de peito aberto e com a mesma retórica partidária de sempre, é necessário que sejamos melhores na nossa política do que eles nas suas ameaças de terror e ódio.

Imagem de Nuno Saraiva Art, "ESTES MASCARALHOS." - Inimigo Público 14.08.2020.