A Bolsonaro só lhe resta morrer, para se tornar relevante. Com a delicadeza de um elefante, anunciou que se contaminou com coronavírus e se medicou com cloroquina. Com a deselegância de um porco, tirou a máscara em frente aos jornalistas para dizer que está "bem, tranquilo, graças a deus" e que o vírus, à imagem daquilo que já tinha dito no início da pandemia, não passa de uma "chuva". Ou seja, nada grave, apesar de já terem morrido mais de 65 mil brasileiros de Covid-19.
Não obstante esta situação parecer uma estratégia de propaganda — após ter feito de tudo para desprezar a pandemia, transformando o país num epicentro mundial, sem ministro da saúde, após a demissão de dois, tendo tentado mudar a bula da cloroquina ou forçado médicos a administrá-la, sem esquecer que fez de tudo para esconder os primeiros exames enquanto ia a manifestações e incentivava a desobediência ao isolamento, impingindo dificuldades no acesso aos recursos de auxílio social — ainda assim, há quem se ojerize com o desprezo que a maioria das pessoas sentiu (e sente) pela sua vida, comparando os desejos (ou súplicas) de que Bolsonaro sucumba ao vírus que tanto despreza, a quem apoia o seu desprezo pela vida de milhares de pessoas que estão a morrer contaminadas ou sem atendimento.
Considerar isso é como se houvesse uma equivalência moral e ética entre fascistas ou nazis e aqueles que os querem ver mortos. Não há. Porém, isto mostra a Bolsonaro que só lhe resta morrer para se tornar relevante, sobretudo para aqueles que entre qualquer alternativa que coloque em causa os planos de desigualdade e discriminação neoliberais em curso no país, ou o fascismo vigente, preferem manter tudo como está. Pois só como está é que é possível ir forçando a privatização de serviços essenciais — como o saneamento básico e a água, com o patrocínio das empresas de bebidas alcoólicas e marcas de refrigerantes, e o apoio até do centro-esquerda — ou o desmatamento da Amazônia, em prol da agropecuária, a privatização de empresas estatais (sobretudo ligadas às commodities ou serviços de saúde e educação) ou então a flexibilidade de atividades económicas durante a pandemia, desobrigando medidas de segurança, sem proteção laboral e salvaguardando apenas os lucros dos bancos e das grandes empresas.
Por isso, mesmo afirmando ser contra ele, ou regozijando com a detenção e investigação de elementos próximos, através do cerco judicial que se montou em torno do clã bolsonarista, muitos, ainda assim, defendem tanto a sua vida (assim como as suas políticas e visão económica), que chegam ao ponto de equiparar o antifascismo e o antiautoritarismo, que visam combatê-lo, à sua violência, que se abate sobre toda a população. Como escreveu Lampedusa, para os liberais “algo deve mudar para que tudo continue como está”.
Como está é o que tem conduzido à ascenção dos fascistas e ao extermínio de pobres, negros, mulheres, gays, trans, índios e favelados, ou à miséria e morte de todos os que perderam o emprego ou arriscam morrer para o proteger. Como está é o que tem permitido mais de um milhão de infectados e 65 mil mortos (ou até seis vezes mais). Humanizar o fascismo, que é desumano, só contribui para legitimar o fascismo. Se morresse, Bolsonaro não seria mártir de coisa nenhuma, mas apenas vítima da sua própria política. A mesma que, quase de certeza, fará de tudo para continuar a prescrever a morte de muitos outros. De ofício. Por isso, a sua morte (literal ou política) seria a única coisa capaz de o tornar relevante, por ser desprezível.