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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

O absurdo destemido

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Nos últimos tempos, a sociedade portuguesa parece afogar-se em sucessivas ondas de pânico moral, que abrem caminho à instalação do fascismo. São ataques de conservadorismo baseados em questões morais que procuram esvaziar o debate público, desmerecer garantias democráticas, ofuscar os problemas sociais e criar novos inimigos. Desta forma, enquanto todos se escandalizam com um cartaz, uma pintura numa estátua e uma série animada, ignoram a presença de um fascista na assembleia ou as ramificações de neonazis nas polícias e forças de segurança, através de organizações anónimas ou robôs que promovem ódio nas redes sociais. Últimamente, qualquer sinal de humanidade é escandalosamente alarmante, menos uma manifestação nazi contra o antirracismo. O absurdo (destemido) acaba por ser normalizado.

Enquanto a extrema-direita promove as suas práticas impunemente, a maioria dos partidos políticos resolve declarar que "Portugal não é racista", entrando nessa onda de despolitização, esvaziando o problema em vez de o enfrentar ou debater, e desarmando quem vise combater o racismo. Ao mesmo tempo, uma série animada é censurada na televisão pública, de ofício, após 'reclamações' contra o seu conteúdo! Isto não é surpreendente, pois uma das estratégias dos fachistas é condicionar a opinião pública, a sociedade e até o próprio poder público, mesmo antes de chegar ao poder. Talvez alguém defenda agora que Portugal "não é homofóbico nem machista", mas a recente polémica mostra o contrário.

"Destemidas" é uma série infantil sobre: "Histórias de mulheres excecionais, ousadas e decididas que fizeram o que quiseram e lutaram pelos seus sonhos. (...) Que foram capazes de ir para além das convenções e preconceitos sociais e triunfaram perante as adversidades", diz a RTP. Na verdade, é uma adaptação da obra literária “Culottées”, da ilustradora Pénélope Bagieu, um conteúdo original da France Télévision que já ganhou diversos prémios. Mas a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) recebeu várias queixas sobre um episódio específico, segundo as notícias: "as queixas centram no episódio sobre a femininista francesa Thérèse Clerc, ativista pelos direitos das mulheres. O episódio da série de animação aborda temas como o aborto, homossexualidade, feminismo, divórcio e religião". Entretanto, o Provedor adianta que determinou que a série fosse retirada da RTPPlay e que não voltasse a ser exibida. Porquê, se o próprio diz que o objetivo era "tornar tranquila essa relação com o facto de muitos adolescentes se interrogarem sobre a sua identidade de género"?

Por isso, foi criada uma Petição Pública "Pela reposição do programa "Destemidas" na RTP", que se limitava a apresentar “mulheres corajosas que mudaram o rumo da história” (nas palavras da própria RTP). Pois estas são histórias reais, de mulheres reais que não podem ser apagadas! Dizer que o conteúdo é inapropriado para crianças, é negar o direito de existência dessas pessoas.

Porém, o facto de a ERC, o Provedor do Espectador ou a própria RTP (que retirou o episódio para "refazer" a dobragem), que são entidades públicas, que obedecem à Constituição e devem zelar pela pluralidade e a igualdade de direitos em todas as suas ações e decisões, terem tomado partido das "queixas" apresentadas é gravíssimo e inadmissível!

Além de ser um atropelo à história e existência das mulheres ali representadas, é um atropelo à dignidade de todos os que se sentem retratados nessas histórias, vidas, experiências, dificuldades, sofrimentos, sentimentos e liberdade. Mas pior do que isso: é a institucionalização da violência e do ódio pautado no moralismo de quem condenada a existência do outro através do revanchismo, do nacionalismo, da supremacia branca e da misoginia.

Ou seja, o acolhimento do fascismo disfarçado de conservadorismo.

É imbecil minimizar o racismo

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O problema das falácias que assentam em afirmações absolutas é que basta um exemplo para as desmentir. Isto é, basta haver um pato de outra cor qualquer para desmentir a falácia de que “todos os patos são brancos". Isto já seria bom para desconstruir a ideia de que "não existe racismo em Portugal", mas afirmar que só "existe em alguns sectores" também é uma falácia, que transforma a questão numa pauta moral e individual, meramente comportamental. Que não é. Afirmar isso não prova a sua inexistência. Mas é sinal de miopia, política e social.

Esta forma superficial de tratar a questão tem um objetivo instrumental, ao remeter o racismo para a esfera pessoal ela isenta aqueles que não se declaram como tal e ajuda a moralizar e espionar os comportamentos dos restantes, permitindo que se classifique algo de "bom" ou "ruim" e ainda de "imbecil" e "extremo", quando se tenta aprofundar o debate e a questão. No limite, serve para bloquear as mudanças na estrutura social e económica que torna uns priveligiados e outros discriminados, ao mesmo tempo que legítima e normaliza todos os abusos quotidianos que vão além da esfera da dimensão pessoal e íntima. É como dizer que "se todos reciclarmos o aquecimento global acaba", mas ignorar ou consentir a poluição gerada pelas cadeias alimentares, as empresas multinacionais que esgotam recursos naturais e fazem negociação de cotas de poluição, a constante produção excessiva de produtos não essenciais e sem valor de uso ou as implicações do consumo energético à base de combustíveis fósseis.

O problema é que o racismo não resulta apenas das ações individuais, ele é uma construção que resulta da estrutura de exploração do trabalho - que segrega uns e não outros, que explora mais uns que outros, e que foi criada, defendida e perpetuada até hoje pelo estado, a igreja e os mercados financeiros - acabando por contaminar as relações individuais, conscientes e subconscientes. Ele é uma imposição da estrutura capitalista e do modelo social em que vivemos, que se alimenta da concessão de espaço e não da resistência organizada contra ele.

Assim como o machismo, o racismo é estrutural e está presente não só nas nossas ações como no nosso pensamento, nas nossas relações, no nosso imaginário, nas instituições e até no direito, quando, por exemplo, se nega ou dificulta a nacionalidade a alguém com base apenas na consanguinidade ou quando se admite ou não determinado nome. Ele está na retórica do mérito, que se fundamenta num tabuleiro de jogo viciado, onde uns partem várias casas à frente, com três lançamentos de dados e outros não podem sequer jogar. Por isso, combatê-lo vai além de uma mudança de paradigma individual e de meras conquistas pontuais. Pois da mesma forma que as quotas não eliminaram o machismo, nem a eleição de Obama mitigou o racismo no próprio país, a representatividade só será significativa se acompanhada da criação de uma consciência que se insurja contra o resto.

A explosão de revolta e indisciplina que surgiu um pouco por todo o mundo - que muitos chamam de violenta, de vandalismo, de "imbecil" e de extremismo - nada mais é do que o reflexo de uma sociedade que apenas reconhece o outro na medida da sua criminalização. Mas não é por isso que deixa de ser legítima. O próprio Martin Luther King Jr., que o establishment gosta de citar como voz do pacifismo, sabia que uma ação não-violenta significa exercer uma ação coletiva que seja capaz de perturbar o funcionamento normal da sociedade, além das regras, das instituições e da moral. Direccionando essa revolta popular para uma força de combate capaz de coagir as elites. Embora ele discordasse da violência como tática, ele estava longe de defender um protesto passivo e complacente, que tantos usam para deslegitimar protestos radicais ou envergonhar manifestantes indisciplinados. E diga-se, pintar estátuas está longe de ser radical. Da mesma forma que criticar ou analisar e rever obras, corrigir ou limar a linguagem ou atitudes, também não é censura e está longe de queimar livros. Afirmar isso é uma falácia que recorre a falsas equivalências para censurar ou anular a voz do oprimido.

Vejam como isso se insere muito mais no âmbito da representação do que qualquer outra coisa. Ainda assim, enfrenta tanta resistência ou manipulação, como confundir a obra e a pessoa de quem é representado com o resultado final. Eu posso desenhar um cão, mas dificilmente vocês concordarão que possa ser considerado um canídeo.

Além disso, argumentar que esta questão é inoportuna durante a Pandemia, é ignorar que a Pandemia serviu apenas como estopim de um problema que já cá estava e que só piorou com ela, sendo brutalmente mais mortal e sacrificante sobre os pobres, as pessoas racializadas, os sem-abrigo e as mulheres. Mas diminuir ou deslegitimar sempre todas as questões identitárias, porque "não interessam" às pessoas, é o mesmo que dizer "primeiro nós" e "depois eles". E quem se serve desses argumentos morais são os supremacistas, a extrema-direita e os fascistas. Então, não acusem quem se esforça por politizar as pessoas, por criar consciências ou quem luta por desconstruir preconceitos, de alimentar aquilo que muitos recusam ver ou combater. No limite, isso é uma tremenda desonestidade e injustiça. É como culpar as mulheres e o feminismo do machismo ou os pobres das desigualdades.

"Vidas negras [também] importam", porque até aqui não têm importado nem têm sido minimamente respeitadas.

Simplificar estas questões ou mimetizar argumentos superficiais é que gera a polarização e não o contrário. Deixar que o debate se faça nos termos impostos pelos movimentos populistas ou recuar com medo deles, é abandonar o debate à lógica do senso comum conservador, normalmente dominada pela direita e pelas elites, em vez de procurar apoio através da politização e consciência coletiva. O que envolve tanto trabalho prático como a criação de consciência, como fazia o Partido Panteras Negras, nos EUA, que enquanto organizava a resistência, promovia grupos de leitura onde, segundo Ângela Davis, inclusive as mulheres de baixa renda, apesar das dificuldades linguísticas, encontravam eco nas palavras de Lenin. Portanto, a questão não é calar o assunto, mas arranjar forma de o amplificar criando sentidos e significados.

É imbecil minimizar o racismo porque ele não desaparece por decreto ou após a discussão. Ele permanece latente, quer se queira admitir ou não.

Portugal dos Pequenitos

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Nada define melhor a visão de mundo da maioria dos portugueses do que o parque temático criado pelo Estado Novo, o Portugal dos Pequenitos, com o intuito de educar pais e filhos sobre a dimensão do império português espalhado pelo mundo. Algo que apenas rivaliza com a opulência ao redor do padrão dos descobrimentos, reconstruído em Belém, como apologia às façanhas dos navegadores lusos. Se num o visitante se sente enorme face à variedade de lugares replicados em miniatura, no outro é esmagado pela opulência monumentaliza na glória eterna dos homens que desbravaram os mares. Os símbolos, os mitos e a narrativa arquitetónica do império colonial, religioso e unificado, tornam-se numa extensão da personalidade lusa, que se sente legitimada e empoderada. Sobre a escravidão, os traumas, os paradoxos, os conflitos e a violência, os erros e a falência dessa estrutura, nem uma linha. Por isso, quando confrontado com a fragilidade dessa arquitetura ideológica, o pequeno-português sente-se espoliado da sua verdade: os portugueses adoram enaltecer os seus heróis, mas detestam a sua história.

Da mesma forma que é incapaz de olhar e entender a estrutura de poder bastante frágil em que assentaram as cruzadas de conquista do norte de África e sucessiva exploração das vias marítimas até à Índia, o português quer-se grande e descendente do mesmo heroísmo que vê e contempla num passado anacrónico onde “tudo valeu a pena”. Por isso se esforça em legitimar, negar ou desvalorizar qualquer indício, questão ou facto que macule a aura de perfeição desse passado, onde “fomos donos de metade do mundo”. Por isso defende a honra, a visão e os feitos desses homens mitológicos, com o mesmo afinco com que muitos deles defenderam a evangelização dos povos indígenas (que passaram de 3 milhões, em 1500, para menos de metade em 70 anos), ou a escravização dos homens de pele negra e ascendência africana, para bem do país, da economia e da riqueza de um império assente em dividendos pagos à custa das divisas do ouro, da prata, do açúcar e da madeira amazónica. Assim como é incapaz de se enxergar como oprimido durante todo esse processo de vassalagem, o português é incapaz de ver a opressão de que foi autor.

Assim se perpetuou e enraizou a pobreza inexplicável de um país que explorou as maiores minas de ouro do mundo, que dominou o tráfico de escravos no atlântico (mais de 12,5 milhões de escravos transportados para a América), que esteve em guerra contra os holandeses por causa dos engenhos de açúcar no Brasil, comprando-lhes cada pedaço de terra, que dominou as rotas comerciais para a Índia, na qual muitas especiarias valiam mais ao grama do que o próprio ouro. A ocultação da escravidão e o enaltecimento de um “colonialismo humanizado”, serve como atenuante das contradições que o português enfrenta, entre a pequenez do império e a grandiosidade dos homens que o compunham e dos feitos a eles atribuídos. Um processo nacionalista (de criação do imaginário da Nação) pelo qual passaram os sucessivos mecanismos de eugenia, primeiro no continente, depois nas colónias e por fim no imaginário. Por exemplo, não existe um único museu sobre a escravidão no país.

As marcas da escravidão na história dos portugueses tornaram-se tão invisíveis quanto os negros na sociedade portuguesa. Expurgados e ostracizados da própria cidadania, radicados em lugares periféricos, sem acesso ao “lugar de fala” em academias, jornais e espaços públicos e ou políticos, os negros, os indígenas, os brasileiros e os africanos em geral, são vistos como intrusos da pátria. Por isso, qualquer processo de redescoberta histórica – mesmo que bastante documentado – ou que coloque em causa as narrativas enraizadas na psique social, salvaguardada pelas elites (estatais e religiosas) que ecoam na pequeno-burguesia escolarizada, são vistos como uma afronta. Logo, qualquer ato de repúdio se converte numa falsa equivalência: entre os linchamentos dos supremacistas e a pichação de estátuas (criadas em pleno 2017!); ou entre estas e o terrorismo islâmico; ou entre o antirracismo e os movimentos fascistas; ou então, numa tese aparentemente apaziguadora, mas igualmente hegemónica, a ideia de que lutar é prejudicial à reivindicação.

Agarrados a um presente onde os seus pequenos privilégios ainda passam pela diminuição – social, intelectual e material – dos outros, o pequeno português (às vezes até engajado em pautas progressistas), é capaz de reproduzir exatamente os mesmos argumentos morais, ou as mesmas falácias lógicas e de reproduzir as mesmas mentiras (e meias verdades) com que no Brasil se continuam a dizimar indígenas, ostracizar quilombos, devastar a natureza e encarcerar negros, assim como nos EUA. O português exportou o racismo que afirma combater na América, reproduzindo os mesmos hábitos que fizeram dele um explorador e hoje um privilegiado europeu.

Navegando entre a ignorância e a hipocrisia, os pequenos portugueses “heróis do mar”, rejeitam o próprio reflexo no espelho, preferindo uma caricatura da história do que um retrato realista. Porque isso significaria abdicar do pouco poder que ainda acham deter: controlar as narrativas no espaço público.

Proteger estátuas e desprezar vidas

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Quando os europeus chegaram à América (que só mais tarde viria a ter esse nome, fruto de um autoplágio de Vespúcio), reduziram as culturas existentes a pó: escravizaram e mataram os povos que nela habitavam, destruíram e saquearam as suas cidades e templos, e derreteram as suas estátuas, relíquias e objetos de culto para fazer barras de ouro. Os objetos perderam-se, mas ficou um retrato de uma época, que nos séculos seguintes iria povoar e explorar um continente inteiro à base de mão de obra escrava, importada do continente africano. Uma época onde se deu então início ao maior processo de apagamento cultural, que serviu de base para a economia extractivista e dependente que hoje explora o hemisfério sul em prol do hemisfério norte, ocultando o "outro" do processo histórico. Nada melhor como o "Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas" - outrora intitulado "Dia de Camões, de Portugal e da Raça" - para reflectir sobre isso, que hoje se espelha na sociedade.

A imposição de símbolos, significados e mitos está na base da assimilação cultural levada a cabo pelos europeus, imposta aos povos indígenas e africanos, em prol do lucro mercantil e depois da construção das nacionalidades. Nela está patente uma visão de inferioridade da cultura, religião e modos de vida de um povo que depois se extendeu à sua cor de pele, origem geográfica e ascendência genética. Por isso os "nossos" heróis são necessáriamente os demónios que assombram o passado de quem herdou um lastro de discriminações, na base da violência e da segregação. Por isso é importante discutir uma noção de sociedade que não se limite à glorificação de mitos escolhidos apenas por uma parcela dela, muitas vezes homens ativos nessa destruição.

Nisso temos que incluir as estátuas, nomes de ruas, pelourinhos e até os roteiros de visita aos palácios europeus, onde até as prustitutas podiam ter escravos, mas onde a história dos escravos sexuais, o seu comércio, reprodução e maus tratos foi totalmente apagada dos roteiros ou reescrita. Estátuas não são história e a história não é um objeto material. Ela escreve-se e interpreta-se através do olhar do presente sobre o passado, e sobre o olhar do passado na sua visão de mundo, sociedade e presente. E dela fazem parte também os significados que cada época atribuí aos seus signos e objetos materiais, seja erguendo estátuas de traficantes de escravos (do séc. XVIII) no séc. XIX, ou derrubando essas estátuas em 2020, a história não se "apaga", mas constrói-se em cima disso e com isso.

Dizer sobre um tirano que "a história irá julgá-lo", mas depois alegar que "não devemos julgar a história" dos esclavagistas, é escolher por adoptar tiranos de estimação. É defender um lastro de abusos inconciliáveis com a dignidade humana, ocultados por narrativas de branqueamento histórico replicadas através da educação, que impedem o debate e a análise crítica do passado. É defender também a imposição de uma visão parcial do mundo, em cima de um património cultural e institucional de privilégios e desigualdades.

Afinal, se o critério de não derrubar estátuas como parte da história fosse sólido, estátuas como a de Saddam Hussein não deviam ter sido derrubadas. Ou então, se não se pode incutir culpa aos heróis que derrubaram o fascismo, por quê derrubar ou profanar as estátuas da ex-União Soviética nos países da Europa de leste. Se a comoção é pelo valor intelectual do homem representado, então onde está a indignação pela constante profanação do túmulo de Marx?

O problema, como na maioria das vezes, é ideológico. Tanto quanto é identitário. Afinal, como o próprio Marx explica, toda a exploração levada a cabo nas "Índias Orientais" e a descoberta de ouro e prata na América, exterminando indígenas, caçando e escravizando os povos africanos, em minas, plantações e engenhos: "são todos fatos que assinalam a alvorada da era da produção capitalista. Esses processos 'idílicos' representam outros tantos fatores fundamentais no movimento de acumulação originária". E é isso que está em causa aqui: essa acumulação e posterior financeirização do mundo, foi feita à base da exploração e extermínio do outro e da sua sucessiva submissão, social e cultural, através do uso constante da força e de justificações morais, económicas ou religiosas que culminaram no racismo violento e opressor que hoje existe. Uma exploração que foi além da escravidão, das guerras civis, das guerras mundiais, das crises do capitalismo e dos levantes pela independência dos países africanos. Uma exploração que vai até aos dias de hoje, com a brutalidade policial, o encarceramento em massa e a discriminação.

Enquanto os heróis do passado forem os algozes dos antepassados de quem sofre com as injustiças do presente, não há conciliação possível. Eu troco todas as estátuas em prol da dignidade humana. Quem não?!

O racismo e o fascismo de mãos dadas

AP Photo/Julio Cortez

Quando não se tem nada a perder, é preciso arriscar tudo. Em primeiro lugar, as manifestações antirracismo que têm surgido nos EUA, nos últimos dias, após o assassinato de George Floyd, pela polícia, merecem toda a nossa solidariedade. Elas não só são legítimas, como ousam expor as entranhas de um país que, apesar de economicamente rico, é socialmente falido, violento, opressor e desigual. Toda a solidariedade é pouca, quando falamos de gente que vive num território que lhes nega a cidadania plena, há gerações e durante a vida inteira, subjugando a igualdade com a morte, a escravidão moderna nas prisões (quase todas privadas e esmagadoramente ocupadas por negros, apesar destes serem apenas 13% da população, onde é permitido o trabalho forçado) e a segregação por meio da violência policial e da discriminação institucional.

 

Em segundo lugar, devemos repudiar totalmente a escalada bélica de um governo que não faz um mínimo esforço por mitigar as contradições da sociedade, mas sim alimentá-las, em todos os eixos, gerindo o caos como fonte da sua legitimidade em governar para uns e contra os outros, atacando e desrespeitando qualquer grupo que não pertença à sua base de apoio. Assim como devemos repudiar a mínima associação com grupos fascistas e neonazis, cujo revisionismo faz parte da estratégia de apropriação de signos e significados, que se vai adaptando conforme o contexto. Porém, a partir do momento que se afirmam como são, não podem ser tolerados nem normalizados, mas sim enfrentados e combatidos! É tão necessário resistir quanto reagir ativamente, sob pena de ceder ainda mais espaço para a barbárie.

 

Em terceiro lugar e por fim, só se compreende aquilo que está a acontecer, seja nos EUA ou no mundo, através de uma conexão à realidade prática da população. Pois o sentido das lutas deriva da base material do sujeito oprimido, violentado e negligenciado. Por isso a urgência para que haja uma solidariedade universal para com determinadas batalhas que vão além do apreço ou não da violência, do maniqueísmo oportunista e do apego à propriedade: estamos a falar de vidas humanas, vidas que são massacradas pelo aparelho do estado, com aval da justiça (raros são os polícias condenados) e com a omissão da sociedade; estamos a falar de um grupo que até na pandemia é discriminado, depois de ter sido abandonado, aumentando o índice de mortes entre a população negra; e estamos a falar de uma massa de gente cuja vida é talhada por essa falta de oportunidade, respeito e dignidade pela cor de pele.

 

Entretanto, Donald Trump propôs classificar os movimentos antifascistas como terroristas. Algo que Bolsonaro partilhou imediatamente. O racismo e o fascismo andam de mãos dadas, assim como o capitalismo, que endossa os dois. No mesmo dia, em São Paulo, a Polícia Militar escoltou manifestantes fascistas (com bandeiras neonazis) e mandou bombas de gás lacrimogéneo contra manifestações antifascistas e pró-democracia. A criminalização e perseguição de grupos políticos já aconteceu antes na história. Sabemos no que deu, e é por isso que nos devemos unir contra isso! Sem limites, sem dúvidas, sem hesitações e com força!

 

Imagem: AP Photo/Julio Cortez.