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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Será que o Brasil já “acabou, porra”!?

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O problema no Brasil é que há tantos problemas, a concorrer entre si, que se esqueceu o problema mais urgente: estamos a viver a pior pandemia dos últimos 100 anos, com o segundo maior número de casos e o maior número de mortes diárias no mundo, apesar da subnotificação. O problema é que o Brasil tem um presidente que além de negar a gravidade do coronavírus e as consequências da Covid-19, também nega todos os princípios cívicos e democráticos. Um presidente para quem a democracia já “acabou, porra!”, ou está prestes a acabar, “não é mais uma opinião de 'se', mas de quando”, segundo o filho. O que justificaria “uma medida enérgica”, contra os outros poderes.

 

Estas afirmações surgiram no seguimento das operações da Polícia Federal (PF), de busca e apreensão em casa de empresários, aliados e políticos ligados ao governo, autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito de um inquérito que investiga produção de notícias falsas e ameaças contra os juízes. Entre os visados, estão nomes como o empresário Luciano Hang, dono da franquia de lojas “Havan”, os youtubers Allan dos Santos e Winston Lima, e ainda Sara Winter, que lidera um grupo paramilitar acampado em Brasília, “Os 300 do Brasil”, que defende a “ucranização” do país (leia-se, a criação de grupos paramilitares neonazis) e que após as buscas na sua casa publicou vídeos ameaçando agredir e perseguir o juiz do STF que autorizou a operação, incluindo a sua família e funcionários. Ninguém foi preso.

 

Em menos de 24h, a polícia passou de bestial a besta, aos olhos do governo. Isto numa semana que começou com uma operação da PF que visou o governador do Rio de Janeiro, investigando suspeitas de corrupção na compra de equipamento médico. Uma operação festejada pelo governo e que decorreu um dia após Carla Zambeli – a deputada que tentou vender uma vaga no STF a Sérgio Moro, em troca da superintendência da PF no Rio de Janeiro, que Bolsonaro queria alterar – revelar saber que vários governadores são alvo de investigações por parte da PF, corroborando e justificando as falas dos ministros que pediram a prisão destes, por terem decretado o isolamento social. Ou seja, está aberta uma disputa pelo controlo das armas, entre o Executivo e o Judiciário. Um braço de ferro.

 

Claro que, do lado do governo e dos bolsonaristas, essa disputa vem acompanhada de uma narrativa de “ultrapolítica”, que incorpora todas as teorias da conspiração (e distorções ideológicas) sobre a ameaça constante do comunismo, numa “guerra cultural” onde até a imprensa internacional “é de esquerda”. Uma luta contra um inimigo imaginário, que recupera parte da retórica da Ditadura Militar, com um teor totalmente fascista, tendo como eixos o ódio e o medo, a par de todas as muletas típicas da extrema-direita um pouco por todo o mundo, inclusive em Portugal, do “marxismo cultural” à “ideologia de género”, passando pelo preconceito e o moralismo da guerra do “nós” contra “eles”. Onde vale tudo para defender os “valores” de um “mito da pátria”, racista, chauvinista e antidemocrático.

 

O problema é que, ao mesmo tempo que este folclore decorre nos corredores de Brasília, as vítimas pela Covid-19 não param de aumentar. Porém, apesar dos números serem bastante inferiores aos reais, alguns governadores começam a ceder à pressão e a flexibilizar o isolamento, tendo como principal indicador apenas o número de mortes. O Brasil está mergulhado num caos sanitário, social e político, com o único propósito de ir “passando a boiada”, favorecendo a elite que endossa o poder, indiferente à dor dos miseráveis.

 

Diz-se que “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”, mas enquanto não tiram o azorrague das mãos do capataz, as costas sangram, com as veias abertas de um país cada vez mais isolado, desigual e desamparado, onde a população vive agrilhoada à morte. 

Meu querido amigo Brasileiro, este texto é para ti

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Meu querido amigo brasileiro, este texto é para ti. É para ti, para a tua família e para os teus amigos. É para ti que estás em casa, ou que sais à rua para trabalhar, de máscara e mantendo o distanciamento. É para ti que perdeste alguém. É para ti que tens medo de morrer. É para ti que votaste em Bolsonaro e te arrependeste, mas também para ti que não votaste nele, e para quem também não votou no PT, ou para quem nem sequer foi votar. Este texto é para ti porque precisamos de salvar o Brasil e os Brasileiros. E para isso, precisamos da indignação de todos!

 

Precisamos da indignação de todos contra tudo aquilo que o governo de Bolsonaro representa. Da Indignação contra os mais de 20 mil mortos de Covid-19! A indignação contra o avanço da infeção, com mais de 340 mil infetados, perante a total ausência de um plano de contenção unificado! Precisamos da indignação de todos os que estão horrorizados com a política da morte.

 

Precisamos da indignação e solidariedade de todos os que se horrorizam com o teor fascista da reunião ministerial revelada recentemente. E precisamos de nos horrorizar e rejeitar esse mesmo conteúdo. Precisamos de deixar claro que nada do que foi dito naquele espaço é aceitável ou natural. Não é natural nem aceitável que se queira armar as pessoas para combater o isolamento social, propagando o vírus e levando à morte de milhares de pessoas; não é normal discriminar e atacar povos indígenas, ciganos, quilombolas e mulheres, porque todos eles são brasileiros e a sua cultura e existência fazem parte da génese que construiu a identidade e a diversidade do país, por isso, não é normal querer assimilar e diluir as suas vivências e lutas, nós devemos lutar com eles e por eles; não é normal querer vender as riquezas do país, inclusive o Banco do Brasil, sobretudo num momento em que tanto precisamos delas para ajudar todos os brasileiros, e não é normal querer salvar apenas as grandes empresas e deixar morrer as pequenas, pois elas são o verdadeiro motor da economia, juntamente com todos os trabalhadores, formais e informais, que todos os dias arriscam a vida e dão o seu melhor para fazer o seu trabalho, inclusive agora; não é normal que se queiram prender juízes do STF, ou governadores e prefeitos, seja porque tomaram medidas que têm ajudado a salvar vidas, seja por que colocam freios nas irregularidades de quem nos quer tirar a vida; e num momento em que tantos já partiram e todos sentem a dor dessas mortes, não é normal que alguém queira aproveitar a Pandemia para aprovar leis de desmatamento, que favorecem quem comete crimes ambientais e crimes hediondos contra os povos que protegem a Amazónia e defendem uma das maiores riquezas da humanidade. Não é normal defender as mortes, a tortura e os horrores da Ditadura Militar! Por mais absurdo que seja, o fascismo de todas estas declarações violentas não pode ser normalizado! O ódio não é normal!

 

Não é normal um presidente querer formar milícias armadas, dizer que tem uma “inteligência pessoal”, afundado em teorias da conspiração, e que queira usar o estado para proteger a família. Não seria normal nunca, muito menos durante a pior Pandemia dos últimos cem anos.

 

Precisamos de unir esforços contra esta lógica da barbárie, que não respeita a vida, que se refugia na mentira e na violência para nos dividir, para projetar a asfixia da democracia, da diversidade e da liberdade. Precisamos da união de todos os que não estão dispostos a aceitar a ausência de todos os que o governo quer matar. Precisamos de construir uma onda que se oponha à omissão, ao imobilismo e ao medo que tudo isso projeta em nós, sempre que ligamos a televisão ou lemos notícias. Precisamos de afirmar que o problema não são os brasileiros, mas sim o fascismo no qual uma ínfima parte se refugia. Temos que ter a força e a coragem de nos afirmar como antifascistas!

 

Por isso, meu querido amigo brasileiro, tu, a tua família, os teus amigos, os que votaram em Bolsonaro ou não, os que votaram à esquerda ou à direita, tu que acreditaste na mudança, tu que ainda não acreditas em nenhum projeto político, tu que ainda acreditas na ciência, tu que queres o “fora Bolsonaro”, e tu que sabes que o impeachment não vai ser fácil nem cair do céu, ou resolver tudo, tu que tens medo de sair à rua, tu que não podes ficar em casa, e tu que perdeste o emprego, tu que nunca falaste de política e tu estás indignado: precisamos de ti, meu amigo brasileiro! Precisamos da tua voz, da tua fala, do teu protesto e da tua força, para que a nossa força incuta medo àqueles que nos querem intimidar, calar, reprimir e deixar morrer! Precisamos de fazer a casa cair! Precisamos da tua solidariedade para construir uma solução futura!

 

Precisamos de mudar o Brasil antes que o Brasil nos mude ou mate!

 

Ilustração de Matheus Ribs.

Brasil: um estado que mata e manda matar

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Cerca de 19 mil mortos de Covid-19 e mais uma criança, de 14 anos, assassinada, levada e abandonada pela polícia. O horror de ter um estado que mata e manda matar. Brasil, um país refém da desumanização.

 

No mesmo dia que o país chega ao top mundial de mortes diárias, o governo brasileiro, com um militar como ministro da saúde interino e sem um plano unificado com os estados e municípios para realizar testes em massa, emitiu um protocolo que permite o uso em massa da cloroquina. Segundo este, os pacientes terão que assinar um termo de responsabilidade reconhecendo que o remédio não tem eficácia e que pode inclusive levar à morte. É a morte por decreto.

 

Por falar em morte, ufanista dos idos da ditadura, Regina Duarte foi à vida. Depois de minimizar a tortura e as mortes da ditadura, afirmando que “na humanidade, não para de morrer”,  ou que não assinalava a morte de artistas nacionais para não transformar o site da secretaria da Cultura num “obituário”, ela que só queria ser “leve”, sem “arrastar um cemitério de mortos nas minhas costas”, voou de Brasília e foi parar à direção da Cinemateca Brasileira. A mesma que sob a sua gestão ainda não recebeu nenhuma parcela do orçamento anual. Talvez tenha ido para lá para poder queimar pessoalmente os filmes da história do Brasil.

 

Uma história que ficará profundamente marcada pela eugenia que este governo neofascista está a levar adiante, promovendo uma limpeza étnica e sem precedentes, pois o extermínio dá-se em todas as frentes. Ao mesmo tempo que mandam as pessoas sair à rua para trabalhar, retêm o dinheiro do auxílio emergencial e os bancos travam os bilhões entregues pelo governo para salvar microempresas e empregos. Enquanto voluntários distribuem cestas básicas, os polícias invadem favelas e comunidades, matando indiscriminadamente, crianças ou adultos.  Enquanto artistas e comunidades apelam a que se protejam as comunidades indígenas contra o Covid-19, o governo de Bolsonaro certifica fazendas em terras indígenas na Amazônia.

 

Só uma alma perdida não sente a dor, o sofrimento e a raiva de viver tudo isto. Como dizia Zeca Afonso, “a morte saiu à rua num dia assim”. Mas a luta faz-se lutando, diariamente, antes, durante e depois da pandemia, que veio para competir com uma montanha de absurdos e calamidades que já cá estavam, enraizados nas desigualdades que se perpetuam desde as primeiras chibatadas.

A demissão de Teich é um bom sinal?

Foto: Ueslei Marcelino/Reuters (22.abr.2020)

Pode ser que sim, pode ser que não. Nelson Teich não aguentou sequer um mês no governo e pediu demissão afirmando: "não vou manchar a minha história por causa da cloroquina". É o segundo ministro da saúde, no espaço de um mês, a abandonar a pasta no meio da Pandemia em confronto com Bolsonaro. Mas, por mais o nosso desejo seja acreditar que Bolsonaro está à beira do precipício, a verdade é mais complexa do que isso.

 

Além disso, mesmo que caia, nada indica que a política mude de facto. O vice-presidente, general Mourão, fez um extenso artigo defendendo a atuação do governo e ameaçando uma crise de “segurança” no país – o que pode ser uma nuvem de fumo – e culpando os governos estaduais e as outras autoridades pelo caos existente. Apesar de serem os únicos a implementar medidas de contenção e mitigação da pandemia, mesmo com a sabotagem do governo federal. Agora, sem ministro da saúde, novamente, na linha de sucessão estão dois militares e um terraplanista, Osmar Terra. Este último, há um mês e meio usava gráficos descontextualizados para afirmar que a quarentena aumenta a propagação do vírus. Algo tão grave que até o Twitter o censurou

 

Entretanto, as negociações com o “centrão” continuam, intensificadas com a queda de Moro e o inquérito que decorre no STF, sobre as tentativas de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, o que pode levar à sua queda. Porém, a acontecer uma denúncia por crime comum (pela PGR e STF) ela terá que passar na Câmara dos Deputados, para só então provocar o seu afastamento automático durante 180 dias. E até ao momento, por mais indícios que haja, como o vídeo da reunião ministerial, onde isso parece evidente – além dos ataques de Weintraub e Damares aos governadores e STF – o processo requer ponderação, análise e tempo. E tempo é o que o Brasil não tem!

 

Atualmente, o Brasil tem mais de 14 mil mortos de Covid-19, com uma subnotificação de cerca de 9 vezes inferior aos casos reais, e um aumento que se aproxima das mil mortes diárias. A continuar assim, estamos perante uma carnificina que só piora a cada dia.

 

Por outro lado, enquanto vários estados e cidades começam a atingir o limite de ocupação de leitos (Amazonas, Pará, Ceará, Belo Horizonte, Maranhão, São Paulo e Rio), existem vários hospitais federais fechados, por falta de técnicos; a compra de 15 mil respiradores à China foi cancelada pelo ex-ministro da saúde; ontem Bolsonaro publicou uma Medida Provisória (inconstitucional) que isenta de responsabilidades os servidores que cometerem erros ou omissões no combate ao vírus; e insiste em impingir o tratamento por cloroquina ou hidroxicloroquina (o motivo da demissão de Teich), apesar de já se saber da ineficácia contra o coronavírus. Ao mesmo tempo que o país se torna no epicentro mundial da pandemia, o governo cria complicações até no pagamento do auxílio emergencial.

 

Portanto, neste momento, é difícil avaliar se a demissão de Nelson Teich é boa ou má. Pois, neste anti-governo, com os seus anti-ministros, a única coisa capaz de superar a obediência cega da ala militar que o apoia, é o fanatismo inconsequente daqueles que o seguem incondicionalmente. Pior do que um ministro que sucateava o SUS, e outro que defendia os interesses dos privados na saúde, é ter alguém que assine de cruz a política assassina, eugenista e genocida de Bolsonaro, crente das mesmas ilusões e teorias que o cercam, para bajular a sua megalomania narcisista e ânsia de poder, à imagem de Damares, Regina Duarte, Weintraub, ou Paulo Guedes (que atacou médicos e polícias para defender o congelamento salarial)

 

Por mais que queiramos ver a queda iminente de Bolsonaro, enquanto ela não vem temos que nos preparar para o pior, esperando o melhor. Como diz a música de Chico Buarque, “apesar de você/ amanhã há de ser/ outro dia/ você vai se dar mal”.

 

Foto: Ueslei Marcelino/Reuters (22/04/2020)

 

A dor

Edvard Munch - O Grito

Hoje acordei com uma enorme dor de costas. A dor é das coisas mais difíceis de encarar e suportar para os humanos. Tanto a dor física como a psicológica. Sobretudo a segunda. Claro que depois existem matizes para cada tipo de dores que nos afligem. Às vezes, imaginamos dor em partes do corpo que não existem. Outras vezes, magoamos partes do corpo exististentes só de pensar em certas coisas. Mas os médicos explicam isso melhor do que eu.

Perder pessoas é uma daquelas dores que nunca sabemos se é real ou imaginária. Seja voluntária ou involuntariamente, de forma permanente ou transitória, é uma dor que deixa sempre marcas que podem reabrir. Todos nós nos habituámos a perder pessoas ao longo da vida, mas nunca aprendemos a lidar com o vazio que cada um deixa nos cómodos da nossa existência.

Há também a dor de deixar alguém para trás. Os amigos que perdemos de vista, os colegas que mudam de cidade ou que ficam na cidade de onde nós saímos. Os que não caminham ao nosso lado acabam perdidos ao longo do caminho, nas bermas das histórias de afetos e desafetos que nos compõem. Nós também ficámos algures numa dessas encruzilhadas alheias. Por vezes, o reencontro é ainda mais doloroso. As relações humanas são assim, frágeis, sensíveis, insensatas e às vezes dolorosas, mas necessárias para lavar a alma.

Lembrei-me disto tudo enquanto descacascava batatas e lavava a loiça. A dor de costas passou. Pelo menos eu esqueci-me dela. Detesto a ideia de viver num mundo onde a perda de alguém se torna numa dor crónica. Uma dor que se esquece quando se fala de números imaginários e de coisas que têm preço mas que não valem nada. Uma dor à qual nos a costumamos, como se não houvesse opção de escolher outro caminho. Por mais que nos doa e venha a doer as costas, de carregar o fardo de reerguer o mundo, nada é mais difícil de carregar do que a dor de perder o afeto e a compaixão uns pelos outros. Há tantos motivos para que seja diferente.

Imagem:  Edvard Munch, O Grito (1893),  Óleo sobre tela, Têmpera e Pastel sobre cartão, Galeria Nacional, Oslo.

Precisamos de um milagre, sim!

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Desde o início do confinamento que muito se tem discutido sobre o futuro. Para uns, será o advento da tecnologia. Para outros, o florescer da solidariedade e da empatia. Para alguns, a aurora de um novo período iluminista. Mas uma grande maioria fala de uma crise profunda. Contudo, a minha questão é: como é que podemos pensar o futuro sem resolver os problemas do passado? Só com um milagre!

 
#Creches. Muito se tem discutido sobre o retorno à “normalidade”, sem se questionar que tipo de “normalidade” é que estamos a falar. Exemplo disso é a imperiosa necessidade de reabrir as creches. Um problema sobre o qual recaem imensas dúvidas, e para o qual as soluções apresentadas parecem ser no mínimo duvidosas, e no limite absurdas. Contudo, essa é uma dicotomia que deriva de um paradigma social onde os pais têm que “despejar” os filhos em algum lugar para poder ir trabalhar, praticamente desde que nascem, isto porque as licenças de maternidade e paternidade, além de desiguais, são curtas e pobres, sem garantir a proteção laboral em períodos mais alargados. Ora, excluindo o argumento do convívio social, uma vez que o contacto e o convívio entre as próprias crianças é “desaconselhável” (até que haja uma vacina), não seria hora de repensar ou pensar as licenças para cuidar dos filhos até determinada idade?
 
#Educação. Situação semelhante se passa com as escolas, do 1º ao 3º ciclo, passando pelo ensino secundário. Porém, com matizes diferentes. Se por um lado o ensino à distância foi complementado com a ajuda de programas estatais de aulas pela televisão, como o #EstudoEmCasa, os professores têm sido submetidos uma pressão suplementar de trabalho: entre aulas virtuais, um turbilhão de reuniões intermináveis, o deboche social e a exigência de trabalhos em casa, cobra pelos pais que muitas vezes promovem o linchamento dos mesmos, eles são confrontados com a responsabilidade de dar respostas aos alunos sobre um problema para o qual estão tão desarmados quanto nós. Ao invés de se ter aproveitado este momento para promover uma mudança de paradigma, onde se permitisse a emancipação social através de uma adaptação aos contextos e realidades de cada aluno – com realidades bastantes desiguais em casa – não, o que se fez foi exigir de todos o mesmo, aumentando as desigualdades e cobrando resultados impossíveis de atingir em patamares diferentes de condições materiais e emocionais. Nas últimas décadas, tem-se discutido a necessidade de diminuir as turmas do ensino obrigatório, com bons exemplos em vários países, ou de flexibilizar o conhecimento (como na Finlândia e ao estilo de Paulo Freire), mas nada foi feito. Lidar com 30 alunos numa aula é difícil. Ter que controlar uma videochamada com todos eles e ainda levar com os pais a entrar pela aula dentro, é de uma violência incomensurável. Exigir que os professores e alunos arrisquem a vida para terminar o ensino secundário, para que depois façam exames nacionais, ignorando o desnível com que foram confrontados e sem segurança alguma, é querer afunilar o ensino superior, excluindo dele os mais pobres e destruindo um dos maiores elevadores sociais existentes. Faz sentido?
 
#Habitação. O que nos leva à discussão sobre as condições de habitação que temos hoje. Em 2014, a então Relatora da ONU, Raquel Rolnik, insistiu no pedido de suspensão da redução do auxílio moradia no Reino Unido. O governo britânico classificou relatório de “diatribe marxista enganosa” e levou a política adiante. Em Portugal, vimos uma transferência dos imóveis de habitação para o mercado do turismo, criando uma pressão enorme sobre as rendas, sobretudo nas duas maiores cidades, expulsando milhares de pessoas para a periferia (onde as tensões sociais aumentaram, e também os problemas dos transportes e do urbanismo). Em Espanha, os “fundos imobiliários abutres” apoderaram-se inclusive de grande parte dos bairros supostamente sociais. No mundo inteiro houve um processo de financeirização das cidades, gerando um enorme impacto sobre os direitos à terra e à moradia dos mais pobres e vulneráveis, conforme Raquel Rolnik descreve na sua obra (Guerra de Lugares, Boitempo, 2019). Apesar de ser um direito universal do homem, previsto em inúmeras constituições, a habitação própria tornou-se um luxo inacessível às gerações mais novas, pressionando os contextos familiares cada vez mais aglomerados, pois tornou-se num mecanismo de recapitalização do mercado financeiro, acentuado sobretudo após a crise de 2008. Ora, como podemos pensar as cidades, o urbanismo e o combate a uma pandemia ou num mundo onde o teletrabalho (home office) seja uma regra e não uma exceção se muitos não têm condições, materiais ou logísticas, de o implementar em casa? Como é que alguém pode dispor-se a pagar rendas ou prestações (se é que consegue algum empréstimo razoável após os 30 anos) se elas alcançam valores muitas vezes superiores ao salário médio? Como é que podemos pensar o confinamento em casa, ou transferência do trabalho, se a casa deixou de ser um direito garantido?
 
#Saúde. Agregado a isto vêm também os problemas de saúde pública, física e mental. Podemos bater palmas à janela, fazer poemas e desenhos onde ilustramos o heroísmo de médicos, enfermeiros e técnicos de saúde em geral, mas se não mudamos a forma de gestão e investimento da saúde, estamos a sabotar esse trabalho heróico. Que o é, de facto, não só durante a Pandemia, como antes dela e após. Deixar que um médico ou enfermeiro sejam pagos no serviço público com valores abaixo do aceitável e exigir-lhes que salvem vidas, é como pedir a um castelo de areia que resista a uma onda da Nazaré. Além disso, os cuidados de saúde mental não têm acompanhado a pressão sobre o trabalho – e o extravasar deste na esfera privada e íntima – o que tem aumentado a onda de problemas que chegam aos serviços nacionais de saúde. Da mesma forma que o tralhado de um profissional de saúde deve ser (muito mais) valorizado, um trabalhador não pode ser penalizado sempre que tem um problema de saúde, arriscando o seu emprego e o seu rendimento. Existe uma crise de valores onde, por isso, é normal que a vida seja menos importante, sendo que ela sempre esteve em risco para quem não pode ficar em casa, seja quando parte um braço, ou seja durante uma Pandemia. Ao mesmo tempo, é preciso que se defina abertamente qual é o principal critério das administrações hospitalares, salvar vidas ou ter orçamentos equilibrados? Se for a segunda, o que as torna mais humanas, com os seu profissionais e utentes, e connosco, do que um banco?
 
#Cultura. Ainda mais sucateada do que a Saúde, a Cultura foi há muito tempo abandonada à sua sorte. Não só o sistema de subsidiação se tornou numa forma excludente e discriminatória de intervenção nas estruturas culturais, acolhendo uns e expondo outros ao vampirismo do mercado onde a fruição, o financiamento e a criação se têm dissipado, como o mecenato e o patrocínio se tornou num mero esquema de gestão de isenções fiscais e de exposição de egos, num mercado viciado. Um mercado onde o espetáculo (ou a apresentação) é o principal foco e não a criação. Ora, “de barriga vazia não se discute filosofia”. É verdade que a cultura e as artes têm salvo a vida de muita gente nos últimos dias, como aliás sempre fizeram desde que os primeiros homens começaram a pintar cavernas, mas os artistas e todos aqueles que vivem das artes, estão a ser lançados ao degredo e atirados para a indigência. Na melhor das hipóteses, um espetáculo poderá receber um quinto da sua audiência. A venda de livros, apesar de tudo, caiu abruptamente. As pequenas galerias de arte só poderão receber uma pessoa de cada vez. E nem só de lives vive a música. A provocação é simples, se os estados constitucionais, que advogam o acesso à cultura e a liberdade da criação artística, não se responsabilizam por assegurar a sua subsistência e se nós não exigimos que isso seja feito, o que nos separa verdadeiramente da barbaridade do estado selvagem onde imperava a lei da sobrevivência? Se não damos valor à Cultura, o que nos torna humanos, afinal? Talvez seja por isso que tenhamos tanta dificuldade em sentir empatia uns dos outros.
 
Talvez seja por isso que queremos tanto “voltar à normalidade”, onde a dependência do petróleo é tanta que as petrolíferas preferiram pagar para esvaziar os depósitos, do que parar a extração. Um mundo onde o consumismo, a competição, a falsa ideia de mérito, a desumanização do trabalho e o fanatismo, se sobrepõem à solidariedade, ao valor da vida humana, à preservação do planeta, às relações humanas e aos afetos, ao pensamento crítico e à autonomia ou liberdade. Muito se discute sobre as formas de contornar a crise que aí vem, mas como é que podemos pensar em mudanças positivas se a nossa pauta de valores materiais continuar igual e sujeita às mesmas pressões. A verdade é que a crise económica e social já cá estava. A Pandemia acelerou isso, mas ela já existia e servia os interesses da elite capitalista. É fundamental sinalizar essas desigualdades, que tendem a aumentar neste cenário, mas que nunca terão uma solução viável se usarmos a mesma lógica que nos trouxe até aqui. Só com um milagre, e hoje é dia de os pedir.
 

Ilustração de Nuno Saraiva.

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