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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Política, estratégia e pedagogia

André Ventura ataca Joacine Katar Moreira com deportação

Desengane-se quem ache que a população em geral irá repudiar de imediato o ataque xenófobo e provavelmente racista e misógino de que Joacine Katar Moreira foi mais uma vez alvo, por parte de André Ventura. Na verdade, uma grande parte (talvez a maioria) da população não consegue distinguir ataques pessoais (ad hominem) do confronto de ideias, ao mesmo tempo que tem um profundo desconhecimento da história e uma enorme iliteracia política. Estão, portanto, à mercê dos cínicos.

Por isso, fazer política, sobretudo nos dias de hoje, é mais do que defender certas ideias e medidas. Fazer política passa também por ter a capacidade de ler momentos e contextos, social e politicamente. Não saber comunicar-se na era das redes sociais é um convite ao suicídio. Exemplo perfeito disso, entre outros, foi a medida proposta pelo Livre – que já antes tinha sido discutida por outros políticos e partidos – que prevê a restituição do património cultural das ex-colónias aos seus respetivos países. Algo perfeitamente justo. Porém, se noutro momento qualquer o debate já seria complicado e sujeito a derivações e contradições, apesar de moderado; lançado no momento em que estão abertas as feridas do “Luanda Leaks”, das agressões e abusos da polícia e dos gestos dos membros nazis do Chega; ela serviu como mote perfeito para confundir a opinião pública portuguesa – com os menores índices de fruição e participação culturais – entre atacar a ideia e ser racista ou xenófobo, contra Joacine e ao lado de André Ventura (e dos nazis do seu partido).

Para que fique claro, André Ventura teve uma atitude deliberadamente racista, xenófoba e misógina. Ele sabe disso e usa-se disso de forma cínica para controlar o debate a seu favor.

Isto não quer dizer que existam assuntos que estejam vedados ao debate ou que sejam tabus, sob pena de serem usados como “munição para a extrema-direita”, como discutir o legado de figuras históricas ou de movimentos ideológicos. Muito pelo contrário. Por outro lado, também não acredito na ideia da publicidade gratuita. Os vícios e abusos da extrema-direita devem ser denunciados à exaustão e todos os assuntos merecem ser debatidos dentro do espaço público, desde que não sejam pautados pela intolerância. A questão passa por fazer o debate antes das propostas.

Ou seja, ter a perspicácia e a capacidade de permitir que a população se possa apropriar das ideias antes que elas se tornem tabus, bandeiras falsas, ou mesmo uma questão maniqueísta, alvo da mistificação e do preconceito alimentados pela desinformação. Abrir o debate antes de forçar as pessoas a escolher um lado num assunto que não dominam, evitando que se tornem cúmplices dos populistas. Assim como aconteceu com o Aborto, ou mais recentemente com a Eutanásia. Algo que deveria acontecer com qualquer questão, por mais óbvia e transversal que ela pareça. A comunicação, a formação e o diálogo são essenciais para o sucesso e compreensão de qualquer medida.

Uma estratégia que tanto a direita quanto a extrema-direita e a maioria dos populistas têm feito há anos em várias matérias. Quer de uma forma mais institucional, através dos meios de comunicação ou inclusive através do apoio (indevido) de várias instituições religiosas e seculares. Quer através de esquemas imorais (talvez ilegais) e antiéticos, como a propaganda digital e as falsas notícias espalhadas pela extrema-direita. Em coisas tão diversas como a desregulação financeira, passando pelo neoliberalismo e a redução do poder do estado, até ao punitivismo penal, ao conservadorismo reacionário ou a atuação das forças de segurança. E, claro, o medo.

Ao contrário do que a intuição nos diz, muitas destas ideias vão ao encontro do senso comum de grande parte das pessoas. Não por convicção, mas sim porque as pessoas querem respostas simples para problemas complexos e só um dos lados lhes tem apresentado soluções dialogando com elas. Em especial nos últimos anos, um dos lados apoderou-se do espaço público reagindo às necessidades populares, apresentando soluções como: a abstinência contra a gravidez precoce; a prisão e a força policial para manter a segurança e garantir a autoridade; a castração para evitar a pedofilia; as delações premiadas de criminosos para punir a corrupção; a deportação de estrangeiros para salvar empregos e manter a “identidade” nacional… Por mais absurdo que isto nos possa parecer, assim como o racismo e outros preconceitos, estas ideias subsistem.

A pedagogia conta, mas tem faltado. Não se pode exigir esclarecimento onde tem faltado luz. Antes de confrontar as pessoas ou zombar dos atores e adeptos destas políticas, precisamos forcar-nos no entendimento, reivindicando o debate e reinventando a comunicação de ideias. Isso implica a consciência de que o Parlamento não é um fim onde se esgota a política, mas um veículo através do qual o coletivo se representa para transpor as suas ideias e moldar as suas leis e regras de convivência à sua imagem, forma e pensamento.

Portanto, como “um homem só não vale nada” e o “socialismo não cai do céu”, qualquer político, partido e governo (sobretudo minoritários), deve garantir essa comunicação e debate, entendimento e apoio coletivo antes de qualquer proposta, muito além dos períodos eleitorais e das campanhas políticas. A comunicação deve ser a base da organização social.

Hoje, mais do que nunca, os partidos, as forças políticas e os seus atores têm imensas ferramentas à sua disposição e devem ter consciência dessa necessidade. Primeiro, indo ao encontro das pessoas onde eles já estão, na Internet e redes sociais (Youtube, WhatsApp, Twitter, Instagram, Facebook); e depois, ajudando a organizar as pessoas onde elas não vão, em coletivos, assembleias, movimentos e partidos. Para isso, devem fazer mais do que despejar informação, devem ouvir réplicas, aprender com as pessoas e ser uma entre elas. Só assim venceremos.

Lembrar Auschwitz para salvar a humanidade

Imagem da entrada do campo de extermínio de Birkenau, na Polónia -  ULLSTEIN BILD DTL.

Auschwitz é mais do que a memória de um edifício abandonado. É um marco do limite a que o extremismo pode chegar, legitimado por uma ideologia de extermínio e de ódio racial, étnico e político. O Holocausto era um plano que visava o extermínio deliberado de pessoas e a sucessiva erradicação da sua existência e das provas da sua existência. Foi o punitivismo levado ao extremo, sem contraditório, nem defesa ou apelação dos condenados.

 

Mais do que assinalar os 75 anos da libertação de Auschwitz pelo Exército Vermelho (da União Soviética), os dias de hoje exigem de nós um reavivar da memória dessa tragédia humanitária, política e social. Exigem de nós uma reflexão e compreensão das contradições do passado que permitiram tal banalização e a persistência da maldade no seio e na base de uma sociedade de segregação, cujo bem estar de uns dependia da erradicação, expropriação, trabalho forçado e sucessiva morte de outros.

 

É necessário também lembrar e ter presente que se o Holocausto foi tão devastador e horrível, foi não só pela naturalização de abusos dentro da sociedade; como pela sua justificação, reiterada através da política e da acomodação e conciliação social, económica, legal e ética; assim como pela mecanização da estratégia, onde os "outros", aqueles cuja existência era a "causa do mal", eram reduzidos à mais baixa forma de existência - à imagem daquilo que a escravidão fez com os negros - despojada de identidade, vontade e direitos, até à morte e depois dela. Em vários campos de extermínio, depois de mortos, os corpos eram desmontados, queimados uma vez, onde os ossos sobrantes ainda fomegantes eram batidos por outros presos, até não restarem se não cinzas e pó, soterradas pelos próximos a morrer. Este é o limite do ódio.

 

Ódio esse cuja retórica parece subsistir, ressurgir e reinventar-se. Seja através de purgas ideológicas, seja por meio do racismo, xenofobia, misoginia e homofobia, que hoje se têm banalizado, à margem do combate contra o anti-semitismo. Hoje, o bode expiatório pode ser outro, mas a forma, estética e retórica de exclusão e populismo inerentes à ideologia do mal continuam vivos e latentes - cada vez mais escancarados - em diversos movimentos, partidos e políticos da nossa sociedade contemporânea.

 

Conhecimento, por si só, sem aplicação, não faz nada. Porém, ele é o ponto de partida necessário e imprescindível para podermos compreender e agir sobre a realidade que nos rodeia, antecipando os erros do passado e corrigindo as trajetórias do retrocesso, que nos condicionam e direccionam para a barbaridade e para a vulgarização do ódio e das novas propagandas de exclusão. O conhecimento do passado é essencial para evitar o fracasso do presente e salvar o futuro.

A onda populista da intolerância

28 Congresso CDS

O CDS segue a lógica mundial da direita, numa clivagem à extrema-direita, populista, conservadora, na maioria dos casos preconceituosa e em muitos deles autoritária. Porém, a diferença entre este e o Chega não é um imitar o outro, pois muitas das ideias e estratégias usadas hoje pelo partido de André Ventura já no passado tinham sido usadas por vários membros do CDS, embora de forma mais ou menos envergonhada ou até contida pelas direcções, sobretudo no poder. A única pequena e verdadeira diferença entre os dois vai ser o facto do CDS não se poder apresentar como um partido anti-sistema ou fora do sistema (que já foi no passado) sem renegar todas as lideranças pregressas.

 

Ainda assim, sendo até então um partido que congregava diversas correntes ideológicas e visões de mundo muitas vezes conflitantes, a partir de hoje morreu qualquer hipótese de defesa de um ideal democrata-cristão, que tenha por base a igualdade individual e a solidariedade social.

 

O discurso de vitória de Francisco Rodrigues dos Santos foi marcado por uma afirmação clara de ideias reaccionárias, contra a Constituição, homofóbicas, misóginas (patentes na ausência de mulheres na direção) e xenofobas. Não sei quem perderá terreno nesse espaço, se o Chega de Ventura, se o CDS de Chicão, mas desconfio que muito mais é o que os une, do que aquilo que os separa, sobretudo agora, depois de uma organização moderada do aliado natural, o PSD. Quem verdadeiramente vai perder é a democracia e a possibilidade de diálogo moderado dentro da sociedade portuguesa, onde a retórica populista e a visão de sociedade excludente parece estar a instalar-se paulatinamente nas brechas das desigualdades, da precariedade social e do preconceito. 

 

Algo para o qual muito têm contribuído os apoios, financeiros e mediáticos, que ambas as figuras e narrativas conseguem reunir em torno de si, desde grupos de comunicação social, a empresários com interesses difusos, nacional ou internacionalmente.

 

Os democratas, incluindo aqueles que defendem o modelo atual de democracia liberal, mas também os sociais-democratas e os socialistas, estão a ser cercados por todos os lados, por uma onda de intolerância e populismo que não pode ser ignorada, sob pena de nos afogarmos na demagogia retórica que anseia por repetir os erros do passado. Esperemos que depois da tragédia que nos conduziu ao Holocausto, cuja libertação de Auschwitz se assinala hoje, estejamos, de facto, perante uma simples farsa.

Combater a insatisfação dos polícias não chega

Combater a insatisfação dos polícias não chega

A extrema-direita tomou conta de uma parte substancial das forças de segurança portuguesas. Nomeadamente, através do chamado “Movimento Zero”, de um ou mais sindicatos, onde se destaca o SUP – Sindicato Unificado da PSP, liderado por Ernesto Peixoto Rodrigues, aposentado compulsivamente e candidato do “Chega”, o partido de André Ventura apinhado de dirigentes nazis. Chegados aqui, tentar eliminar ou responder à bolha de insatisfação, apenas, não chega. 

 

A partir do momento em que alguém é coaptado pela retórica destrutiva e extremista de movimentos como este, que surgem e se alimentam em volta da precariedade e crescem em cima de preconceitos e ataques de ódio e discriminação, é inútil. É o mesmo que tentar mostrar os benefícios da vacina a um antivacinas, ou tentar converter alguém profundamente religioso num ateu convicto, com base em demonstrações científicas. Quem escolheu ou foi conduzido ao caminho do antagonismo racial, à retórica do nacionalismo, à ideologia visceral do fascismo racista e xenófobo, através de uma narrativa de exclusão e oposição, está num beco sem saída.

 

É óbvio que é de suma importância criar mecanismos estruturais que possam, de certa forma, estancar uma ferida aberta no seio das forças de segurança, em especial na PSP, ligadas à falta de condições materiais e laborais: desde a melhoria das esquadras à aquisição de material adequado, passando pela remuneração, horas de trabalho, reforço de efetivos e benefícios sociais. Porém, nada disso surtirá efeito se não for acompanhado de uma estratégia política e administrativa que tenha por base uma formação policial vocacionada para a proximidade, a mediação de conflitos, o Direito Penal mínimo, e uma filosofia antipunitivista que contrarie o clamor público (de esquerda e de direita), o chamado populismo penal (outrora criticado na tese de André Ventura).

 

Ao mesmo tempo e também por isso, para contradizer essa vontade reacionária, impulsionada pela retórica da impunidade – tanto associada à corrupção, por um lado, como aos ataques das estruturas sociais de opressão contra as minorias, as periferias, as nacionalidades, ou por base em distinções étnicas e raciais, do outro lado – é necessário que se comece a ponderar um sistema de reparação solidária, ponderado e mais complexo, que tenha por base o tratamento e acompanhamento (psicológico e material) da vítima, assim como a transformação dos opressores em colaboradores dessa mudança, social, estrutural e penal. É urgente educar as forças de segurança, começando por estratégias de empatia e capacidade de diálogo, antes de reforçar o seu armamento ou de alimentar a lógica do embate e do confronto, que dão carta branca aos abusos e às opressões.

 

Outro problema urgente que deve ser combatido neste âmbito é a hierarquização estanque e opressiva e tirânica atualmente existente dentro das forças de segurança, que faz com que os militares se relacionem através de uma espiral de abusos, favorecendo o corporativismo e o avanço e coesão de ideais excludentes como os que estão a dominar os agentes. A sua própria opressão serve como justificação da opressão praticada sobre negros, ciganos, mulheres e gays. 

 

Contudo, também nos falta muito trabalho social e sociológico nesta matéria. Sobretudo no trabalho de militância, de debate e de organização social que nos permita, enquanto sociedade, rejeitar radicalmente atitudes como as que têm vindo a ser notícia nos últimos dias, seja a morte de Luís Giovani dos Santos Rodrigues (e o tratamento mediático que teve), em Braga, seja a agressão de sofrida por Cláudia Simões, na Amadora, ou as agressões perpetradas no Bairro da Jamaica, já para não falar no que sucedeu em Borba e as acusações (sem contraditório) à comunidade cigana. 

 

Costumamos procurar a origem dos problemas, para encontrar respostas de base capazes de resolver os conflitos sociais. Mas não podemos esquecer, sobretudo nestes casos, que a sociedade é o primeiro nível combate onde se pode atacar a base e a origem da ideologia do mal, do ódio e a da opressão discriminatória. Somos nós, enquanto coletivo, que nos devemos impor contra isto. No dia-a-dia, em casa, na rua e em qualquer espaço público, sendo críticos e ativos na mudança.

Nazis, autoritários e assustadoramente impunes

Nazis, autoritários e assustadoramente impunes.

Depois de um desembargador ter censurado um filme humorístico de teor religioso; depois de ter um secretário da cultura que faz discursos nazis; depois do ministério da educação ter tentando censurar um livro sobre o guru do governo; depois de escancaradas as evidências da suspeição e falta de isenção do atual ministro da justiça no julgamento e condenação do principal candidato às eleições:

O Ministério Públio Federal Brasileiro resolve denunciar (acusar) o jornalista — que publicou a matéria sobre as mensagens que revelam a quadrilha ideológica montada entre ministério público e judiciário para prender adversários e proteger aliados políticos, ajudando a extrema-direita a chegar ao poder — de ter participado ou colaborado na invasão dos telefones do juiz e procuradores. Algo surpreendente e inexplicável, uma vez que o próprio jornalista não era sequer alvo das investigações no decorrer do processo.

Pelo meio, foram atropelados todos os direitos e garantias referentes à liberdade de informação e de expressão, à autonomia e ética jornalista, ao próprio dever de informar dos jornalistas e meios de comunicação. Um ataque sem precedentes à imprensa livre.

Coincidentemente, isto aconteceu um dia após a TV Cultura (do Estado) ter entrevistado o ministro em causa no programa "Roda Viva" - onde pela primeira vez um entrevistado teve acesso à lista dos seus entrevistadores, com poder de veto - onde afirmou que as ditas mensagens são apenas "bobagem". Ou, onde disse que não ia comentar as agressões do presidente a jornalistas, por ser seu chefe. Ao mesmo tempo, Sérgio Moro aparece destacado nas pesquisas de intenção de voto numas futuras presidenciais.

Nada disto é interinamente novidade, mas não deixa de ser assustador. Desde o primeiro instante que tanto Sérgio Moro como o próprio Bolsonaro (seus apoiantes, políticos e jornalistas da mesma área ideológica ou próxima) ameaçaram Glenn Greenwald e fizeram ataques ao seu trabalho, à sua orientação sexual, à sua família e amigos. Houve inclusive um jornalista que chegou a agredi-lo fisicamente. Por outro lado, abusos de autoridade ou processos de inclinação ideológica nunca foram uma novidade no Brasil, contudo, recentemente tornaram-se a imagem de marca do atual executivo. Basta lembrar o que aconteceu aos voluntários da ONG Alter do Chão, presos e acusados de atear os fogos que ajudam a combater, sem provas, ao passo que os fazendeiros autores do "dia do fogo" andam a monte.

O que realmente assusta é isto. O processo cada vez mais acelerado e flagrante de autoritarismo das diversas estruturas de equilíbrio dos poderes estatais e a cumplicidade das instituições que deveriam assegurar e preservar o estado de direito e as garantias e liberdades democráticas. Uma avalanche de abusos e atropelos, que abre caminho à impunidade de quem está a esvaziar o debate, através do apio que muitas pessoas continuam a depositar em tais atores políticos.

A banalização do mal no Brasil

A banalização do mal no Brasil

Morrer no Brasil é muito fácil. Morre-se de qualquer coisa. Morre-se por ser negro, mulher, gay, índio, ativista, político, pobre, agricultor, estudante, artista, polícia, viciado, jornalista, transeunte, enfim, o difícil é manter-se vivo. O Brasil tem a polícia que mais mata e a que mais morre. Há mais mortes violentas no Brasil do que na Síria. Nada disto é novo, mas tem sido impulsionado pelo atual governo, através da perseguição, ataque e censura a grupos sociais e opositores políticos.

Contudo, não obstante os sucessivos ataques – tanto do presidente, como dos seus filhos, do seu mentor Olavo de Carvalho e dos seus seguidores e correligionários – sempre baseados em preconceitos e falácias argumentativas, com o objetivo de mitigar e eliminar o debate de ideias, ou direitos, liberdades e garantias que possibilitam identificar e apontar as falhas, ilegalidades ou condutas desviantes no governo, também havia quem apontasse aos críticos a falácia "Reductio ad Hitlerum". Ou seja, o erro de reduzir exageradamente Bolsonaro a Hitler, ao classificar o seu governo e várias das suas políticas e atuações de nazis ou fascistas ou nazi-fascistas.

Ora, recentemente, o ex-secretário da Cultura, Roberto Alvim, resolveu anunciar um prémio de Ópera, fazendo um vídeo onde plagia deliberadamente, como contaram membros da secretaria, um discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler, ao som de Richard Wagner. "A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional (…) ou então não será nada”. Com tantos atos ou tentativas de censura a filmes, peças de teatro e livros durante o último ano, até ao momento, a cultura brasileira tem sido, efetivamente, reduzida a pó.

Apesar da exoneração, antes disso, o ex-secretário passou um dia inteiro a tentar justificar a “perfeição” da sua afirmação ou a “ignorância” da origem das suas palavras, capitulando na afirmação das mesmas. O mesmo governante que outrora disse que desprezava Fernanda Montenegro, em defesa do cristianismo, usou das palavras e estética nazista para definir as prioridades culturais do atual governo. Caiu, mas o resto ficou.

O resto é o discurso, a estética e a ação de um governo onde atitudes como esta servem para medir o grau de tolerância da sociedade ao autoritarismo, assim como os limites da democracia. Desta vez, como a resposta e o repúdio foram rápidos (e unânimes), a estratégia vai ter que adaptar os seus ataques e os seus alvos futuros: Roberto Alvim não foi demitido por ser nazista, mas sim por não ser suficientemente discreto na afirmação desse nazismo.

Até porque, se antes de entrar para o governo Bolsonaro dedicou o seu voto no Impeachment de Dilma a Brilhante Ustra, já como presidente recebeu a viúva do mesmo no palácio; o seu filho e o ministro da Economia ameaçaram instaurar um novo AI-5; mandou reformar os livros didáticos nas escolas; não condenou o ataque terrorista ao Porta dos Fundos; culpou ONG’s dos incêndios florestais; e entre outros, chegou a elogiar o ditador Pinochet: fascista nos valores e liberal na economia.

O que todos devem ter em mente é que as ditaduras não nascem espontaneamente de um dia para o outro, elas vão-se instalando e impondo-se paulatinamente, desmantelando as estruturas democráticas de dentro para fora. Num processo tão acelerado como tem sido o brasileiro – entre medidas aprovadas, demissões ideológicas, aparelhamento do estado, os ataques à imprensa e a divulgação constante de notícias falsas – por vezes alguém toca num limite (ainda) intransponível, como aconteceu desta vez, suscitando inclusive o pronunciamento da embaixada alemã e da comunidade judaica.

Porém, isso não significa que haja, no futuro, um desligamento entre este discurso e a ação do governo ou uma inflexão nas medidas que têm circunscrito o espaço democrático no Brasil. Muitos outros governantes e parlamentares (como Abraham Weintraub, Ernesto Araújo, Damares Alves, Ricardo Salles, Paulo Guedes, Augusto Heleno, Moro, Bolsonaro e a sua família) continuam a ter carta branca e incentivos a impulsionar o discurso contra tudo e todos aqueles que se arriscam para os contradizer. Entretanto, à medida que o discurso endurece, os direitos diminuem e a violência aumenta, trazendo com ela as mortes daqueles para quem os limites já foram ultrapassados.

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