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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

DESISTIR OU LUTAR

© DIEGO RIVERA

Por vezes, sinto-me muito cansado. Por vezes, apetece-me desistir. Infelizmente, não consigo. É impossível olhar para o lado e relaxar durante muito tempo, ignorando a onda de desumanidade que se está a abater sobre nós sem espaço para refúgios. A lama transborda por todos os lados e a liberdade, o senso crítico, a história e tudo aquilo a que chamávamos de Humanidade, está a escorregar-nos pelos dedos, como grãos de areia fina.

Os sinais já estavam aí há muito tempo. Porém, agora passaram das aparências para se tornarem evidências do caldo tóxico que se estava a desenvolver. Primeiro, fizeram-nos acreditar na lógica do "eterno crescimento económico" em função do "mercado livre" e desregulado, sem espaço para a ideologia. Depois, sobraram os cacos de uma sociedade miserável, desigual, apinhada de ódios.

Há cerca de 50 anos, Marshall McLuhan explicou-nos que "o meio é a mensagem" e hoje os movimentos fundamentalistas anti democracia dominam os meios, logo controlam a narrativa. Hoje, o principal meio encontra-se na Internet, seja através da deep e da dark web ou por intermédio das redes sociais, cujos modelos de negócio dos aglomerados tecnológicos alimentam e são alimentados pela disseminação dessa menagem: o ódio, a desigualdade, a uniformização do pensamento e o negacionismo histórico e científico. Mensagens e narrativas que vão encontrando ecos em membros das forças de segurança, nas sedes religiosas e nas elites.

Todos eles, com os seus motivos próprios, concorrem para mascarar a história, distorcendo a linguagem e aproveitando-se dos grupos mais suscetíveis à sua mensagem. Sejam os frustrados pelas consequências das múltiplas crises, sejam os desamparados, sejam os fanáticos reaccionários, sejam os grupos mais isolados ou com maiores défices culturais, sejam aqueles que, mesmo tendo um determinado nível de formação superior, são movidos pela pretensão e ambição de colher frutos disso. Estes últimos estão a conseguir protagonismo, poder e dinheiro. Compensa.

Depois, a estratégia passa por criticar, impedir ou destruir qualquer progresso das garantias legais e dos direitos sociais ou qualquer desenvolvimento civilizacional. Coisas que estão na base da melhoria das relações humanas, laborais e institucionais, ou seja, um alvo claro a abater, assim como qualquer um que as defenda.

Contudo, esta guerra não se trava em campo aberto e às claras. O caminho para o abismo tem sido percorrido por diversas trilhas, desde a desinformação selectiva dos meios de comunicação convencionais - onde o cinismo ideológico chegou há décadas e a censura linguística se tornou prática corrente - às redes sociais ou à Internet em geral, onde a ausência de fronteiras, o tráfico de dados pessoais e a possibilidade de automatização de perfis, grupos e ataques, facilitam e impulsionam o crescimento das ondas fascistas que assolam o mundo. E que estão claramente a ganhar em todos os campos.

Estão a ganhar porque não têm oposição. Assim como nos anos 30/40 e depois nos anos 60/70, os golpes sociais, militares e de estado, o fundamentalismo, a segregação e a violência, estão de novo em voga e a tornar-se na prática corrente, a par das restrições e limitações à liberdade: de pensamento, expressão e locomoção. Tudo isto com o respaldo de redes de influência, compostas por políticos, pseudofilósofos, influenciadores, trolls e robôs bem coordenados e posicionados em grupos e plataformas onde colhem apio e geram influência, fazendo transbordar informação falsa, ataques de reputação ou propaganda enganosa para o dia-a-dia. De forma tão transversal que são capazes de penetrar em qualquer bolha, tornando plausíveis coisas tão absurdas como o terraplanismo, ou dizer que uma determinada ditadura nunca existiu, ou que o problema da sociedade é um determinado grupo social e político, ou dizer que existe uma ditadura gay, ou criar a sensação de que a corrupção é endógena. Enfim, as narrativas adaptam-se ligeiramente em cada país.

Seja a elogiar políticas autoritárias, a descredibilizar a política, a atacar minorias, a fazer montagens e memes de humilhação ou a divulgar frases de efeito e a espalhar notícias falsas, eles estão a ganhar e a conseguir inflamar opiniões com base em preconceitos. Estão a conseguir gerar medo e repulsa, projectando ódio em outros grupos sociais e políticos. Estão a conseguir criar um clima de insegurança e medo, numa lógica de antagonismo dogmático, excludente e violento, criando uma ideia falsa de despolitização que abre espaço para ações onde os fins justificam os meios. Ou seja, a linguagem justifica os atos e o politicamente incorrecto justifica a violência e a brutalidade ou vice-versa.

Assim, surgem os golpes, surgem as purgas, surgem as censuras e as restantes atrocidades e barbaridades, anunciadas, ditas e feitas. Assim, com minorias irrisórias e líderes patéticos, os fascistas têm passado a ser eleitos (ou autoproclamados) e incentivado hordas de limpeza étnica, racial, intelectual e social que dão medo e são assustadoras. Isto porque estão a executar uma estratégia de guerrilha e terror, invisíveis aos contra-ataques de quem devia combatê-los.

São imunes às suas contradições e debater com eles ou desmentir as suas ideias é irrelevante. Não gera efeitos. O importante seria quebrar a corrente de ligação e comunicação com as suas bases de apio, algo essencial em qualquer estratégia de militar. É preciso dominar o seu meio, as redes, ou trazer as pessoas para outro: as ruas, as empresas, os cafés e lutar frente a frente.

É por isso que me apetece desistir, mas também é por isso que não consigo. Porque se eles estão em todo o lado, eu não abdico de andar por toda a parte... Haja esperança! Não desistam também, nem desanimem. A luta faz-se igualmente de pequenos gestos anónimos e a utopia é um amanhã por vir!

 

Imagem: Mural de Diego Rivera, "Indústria se Detroit", 1933, Detroit Institute of Arts, Detroit (Estados Unidos). Retirada daqui

ENTRE OS LIVROS E A VIDA

Uma viagem à Feira do Livro de Porto Alegre

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Um dos dois amores da minha vida, a Thaís, levou-me pela mão até ao outro, os livros. Como criança grande que sou, como a minha irmã sempre diz, “o maior dos mais pequenos”, entrei diretamente pela área infantil, preenchida pela magia nos olhos das crianças das escolinhas, deslumbradas pela encenação teatral de “as mil e uma noites”. Dali deambulámos pelas artérias da feira, até desembocar n’ “As Veias Abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano, que acabei trazendo para casa. Não antes de me perder entre outras obras, além dos clássicos da literatura, ou outros menos ortodoxos, como as aventuras e desamores de Henry Chinaski, alter ego de Charles Bukowski, ou sobre como “Ser escravo no Brasil” de Kátia de Queirós Mattoso, ou a “Escravidão” de Laurentino Gomes, ambos espelhados pela pegada de África desenhada na calçada da Praça da Alfandega, pelo Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre. Junto a ela o café, outrora fruto dessa escravidão, que tantos livros alimentou ao longo dos séculos e que ainda hoje nos mantém acordados, mesmo que adormecidos perante o desprezo pelas letras no mundo.

Fotografei o fotógrafo, que ainda bate chapas nas ruas, o Sr. Varceli Freitas Filho, com mais de 65 anos, é o último “Lambe-Lambe” de Porto Alegre. Ele fotografa todos os dias da semana junto ao Chalé da Praça XV e aos domingos no Brique da Redenção. Lá estava ele, aguardando a curiosidade dos incautos pela magia da fotografia, entre os mestres do jogo de damas, também eles parte indissociável daquele espaço, os vendedores de artesanato e os cavalos da brigada. Quem não conseguia ver nada disto eram Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana, cujas estátuas tinham sido tomadas de assalto pelas crianças que se encavalitavam aos seus ombros e colo. Nunca ambos sonharam que os seus versos viessem a despertar tanto amor de gente que ainda está a aprender o que é a vida.

A vida é feita destes encontros. Como encontrar os livros de Gonçalo M. Tavares e de José Luís Peixoto em destaque numa banca e quando os agarrei as moças da livraria imediatamente questionaram se já conhecia o segundo autor. Confirmei que partilhamos a nacionalidade e até mesmo o Alentejo como berço, falei de como comecei a ler José Luís Peixoto e do seu magnífico “Abraço”, elas recomendaram “A Criança Em Ruínas”, e depois de ler o trecho em destaque na contracapa, mandei foto à minha irmã, que afirmou que seremos sempre os quatro lá em casa, apesar de tão longe. “Este autor só traz coisas boas”, disseram elas, fascinadas com estes encontros e desencontros que a literatura proporciona, entre o fascínio das palavras e a magia das histórias embaladas pelos sentimentos. Sentimentos tão puros como os da menininha agarrada ao coração.

Voltámos de alma cheia e de coração aberto, afinal, não é todos os dias que se sobe ao céu e se desce pela mão de um anjo, na certeza de que nunca nos faltará amor para dormir com os querubins.

O GOLPE QUE MATOU A DEMOCRACIA NA BOLÍVIA

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Este é o fim da Democracia na Bolívia. Alegando uma fraude eleitoral, a oposição e a extrema-direita na Bolívia demoliram a Democracia e abriram caminho a um golpe militar. Um golpe com tudo a que um regime autoritário tem direito: intervenção militar, prisões arbitrárias e perseguições políticas. Tudo isto em menos de 24h. 

 

Primeiro perderam as eleições. Depois, não aceitaram os resultados e alegaram fraude por décimas. Convocaram manifestações com apoio dos movimentos da extrema-direita e paramilitar que reprimiu o contraditório das manifestações de camponeses e indígenas. Invadiram casas de familiares de ministros e outros políticos. Fizeram ultimatos ao presidente eleito e invadiram as terras da sua família. Não satisfeitos, agrediram e humilharam Patricia Arce, presidente de câmara de Vinto, arrastada pelas ruas, e depois incendiaram o edifício. Não aceitaram pacificar o diálogo e continuaram a espalhar o caos com vista única e exclusivamente a conseguir sequestrar o poder a qualquer custo. 

 

Um movimento reaccionário, radical, anti-democratico que se desenrolou com a complacência e colaboração da comunidade internacional, a quem o presidente pediu uma auditoria ao processo eleitoral, feita pela Organização dos Estados Americanos, que acabou por tomar uma decisão polícia, dizendo que seria "estatisticamente improvável" (!?) a eleição no primeiro turno devido a irregularidades. Então, o presidente acatou as recomendações e convocou novas eleições. Não foi suficientemente, a polícia e os militares forçaram a renúncia de Evo Morales e tomaram o poder para si. Na sequência surgem imagens de um dos líderes da extrema-direita a entrar no palácio do governo, onde colocou uma Bíblia sobre a bandeira e anunciou a existência de um mandado para prender Evo Morales, tendo invadido a sua própria casa. 

 

Já a presidente e o vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral da Bolívia, Maria Eugência Choque e Antonio Costas, foram presos e exibidos na televisão numa entrevista coletiva transmitida ao vivo. Pelo menos 20 integrantes do legislativo e executivo já recorreram ao asilo político na embaixada do México. O autoritarismo estourou na cara de quem brincou aos golpes de estado de mãos dadas com fascistas. Acabaram de atropelar o Estado de Direito, destruindo e atropelando a vontade popular e a Democracia na Bolívia através da violência.

 

Qualquer pessoa deve repudiar estas atitudes e lutar contra o desmoronamento da Democracia por via das armas, do fundamentalismo e da força bruta, seja na Bolívia ou em qualquer parte do mundo. Porque são coisas que não se enquadram em nenhum espectro democrático ou social e que a manterem-se vão acabar por asfixiar completamente a liberdade de todos, incluindo a de quem apoiou este cenário, convicto de que estaria a defender a prevalência do voto popular. Quiseram apagar um fogo com uma bomba nuclear. 

 

Só tenho a desejar solidariedade a uns e sorte a outros.

O QUE SIGNIFICA A LIBERDADE DE LULA

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A saída de Lula da prisão resultou de uma vitória do Direito Constitucional. Vitória essa que garantiu a execução de uma garantia prevista na constituição, permitindo que todas as pessoas até então presas ilegalmente no Brasil - sem flagrante delito, sem medidas de restrição, sem prisão preventiva e sem trânsito em julgado - pudessem aguardar os seus recursos em liberdade. Isto é, aguardar que a Justiça dite uma sentença definitiva sobre a sua culpabilidade ou inocência. Uma decisão a favor das garantias do Estado de Direito, cuja votação de 6 a 5 na corte do STF - tribunal cuja função é defender a Constituição - demonstra bem a fragilidade da linha que separa a Democracia de um estado policial no Brasil.

 

Portanto, a sua liberdade enquanto réu é, além de um direito individual, uma causa democrática. Sobretudo quando sabemos que era um preso político, uma vez que é do conhecimento público o conlúio entre procuradores e o juiz da causa - que concorreram para acusar e condenar um adversário político sem provas, fazer escutas a uma Presidente sem autorização, pressionar Ministros do STF investigando-os ilegalmente, ignorando provas contra outros políticos, que procuraram enriquecer ilegalmente com a investigação, que pagaram cartazes políticos em causa própria, que favoreceram propositadamente o atual presidente - e que hoje é ministro da justiça. 

 

Porém, sabendo disto, sabendo que o único objetivo da sua prisão visava o impedimento da sua candidatura à presidência nas últimas eleições, tudo o que não seja uma anulação de todo o processo movido contra si será sempre uma derrota para a Democracia. 

 

Tendo em conta isto, não podemos esquecer a importância e o significado da sua liberdade para todos aqueles que defendem a Democracia, e a liberdade de escolha, de expressão e de ir e vir, como pilar da Democracia, independentemente do espectro político. Não é uma vitória da Esquerda. É uma vitória e será um contributo fundamental para todos aqueles que rejeitam o ódio como mensagem e que acreditam numa sociedade livre, igualitária e fraterna, como base da diversidade política e comunitária. 

 

Para quem não sabe, não quer ver, nunca ouvi falar ou ignora por completo: o Brasil é governado por uma família que apela à ditadura diariamente e há mais de trinta anos; que empregava e é intimida de milicianos conhecidos, presos ou condenados por crimes hediondos; que é doutrinária de todos os movimentos irracionais que hoje existem no mundo, desde o terraplaniamo ao fascismo racial abraçado a um negacionismo teológico e fanático contra a ciência; que apela à violência contra mulheres, negros, gays, índios e oposição, ou contra jornalistas e funcionários públicos que não sejam totalmente alinhados à sua visão distorcida da realidade. Mediante isto, toda a sua atuação tem oscilado entre uma vertigem ultraliberal e uma tendência autoritária de ataque a qualquer instituição que os contrarie ou controle e restrinja. 

 

Lula, não é um santo ungido. Não deve ser visto como um messias. Nem é. A idolatria que gera é genuína, no sentido que deriva somente do seu carisma e capacidade de comunicação, juntamente com a estrutura de um sistema presidencial, onde a política depende intrinsecamente da personalidade do detentor do cargo. É assim em qualquer país com este sistema político. Veja-se os EUA. 

 

Por outro lado, ou por isso mesmo, não pode ser escamuteada a sua capacidade de união e pacificação. Qualidades essas que lhe permitiram terminar o mandato com 80% de aprovação. Qualidades essas que lhe permitem hoje contribuir para criar consensos numa frente comum entre múltiplos aliados e partidos, que vão de uma ponta à outra da política nacional e internacional. É patente e não deixa de ser impressionante aquilo que conseguiu fazer e quem já conseguiu reunir à sua volta. Não falo apenas das pessoas e militantes. Estou a falar de líderes de outros partidos, de presidentes de outros países, de políticos de diversos espectros e origens, deste os EUA à Argentina, passando pela França. Não é só pela sua liberdade que ele reúne apoios. É apesar dela que ele consegue reunir consensos. Não é porque ele seja a última esperança da democracia, mas porque ele dá esperança de que o país possa voltar à normalidade e sem conflitos reaccionários ou revanchistas como temos tido. 

 

Por fim, Lula deve ser ou não presidente do Brasil apenas se ele quiser ser candidato e o povo quiser votar nele, ou não. Da mesma que só deve ser impedido ou preso por ter cometido um crime e não pelas ideias ou políticas que defende. Isso é uma ditadura e só nas ditaduras é que se prendem e matam opositores políticos ou líderes de ONG's e indígenas, que se atacam ou bate em jornalistas, ou que se governa com base em propaganda e informação falsa ou perseguição nos órgãos estatais. É isso que estamos a enfrentar e combater neste momento aqui, no Brasil.

 

Foto de Ricardo Stuckert. 

CONTRA O ÓDIO "O AMOR VAI VENCER NESTE PAÍS"!

RODOLFO BUHRER/REUTERS

Ao fim de 580 dias injustamente preso, Lula da Silva foi solto e acolhido pela multidão, que durante todos estes dias lhe fez uma vigília permanente à porta da Polícia Federal. Frente à multidão, que o recebeu com amor, ele devolveu: “vocês eram o alimento da democracia que eu precisava para resistir”! 

 

Depois de ler a lista com os nomes de cada um dos que coordenaram a vigília durante todo este tempo, Lula apresentou a sua atual namorada e futura esposa, que beijou em seguida. Mesmo preso, como ele sublinhou, não deixou de procurar o amor, de lutar pelo país, de perseguir a Justiça e a defender a Democracia. Não desistiu da vida, não desistiu da liberdade, nem desistiu de acreditar na sociedade e no povo brasileiro, porque aqueles que o prenderam “tentaram matar uma ideia, uma ideia não se mata, uma ideia não desaparece”!

 

“Meu coração só tem espaço para o amor, porque o amor vai vencer neste país”, disse ele. Depois de um projeto político que se instalou no poder através do ódio, chega a ser arrepiante e emocionante que o principal líder dos movimentos que lhe resistem, aquele que mais sofreu com esse ódio, aquele que despertou tanta repulsa, tenha uma mensagem de amor para transmitir ao povo. 

 

Ao mesmo tempo, deixando claro que não guarda mágoa a ninguém em especial, confirmou a “vontade de provar que este país pode ser melhor”. É isso que todos queremos ou devíamos querer. Ainda está longe, mas parece cada vez mais próximo. Como uma estrela no céu, cujo brilho consegue iluminar a noite, esperemos que este seja o primeiro passo para uma constelação que faça luz na escuridão que se abateu sobre o Brasil.

Foto de RODOLFO BUHRER/REUTERS

Viva Lula! 

O TRABALHO E A IDENTIDADE

“Operários”, de Tarsila do Amaral, 1933, óleo sobre tela, 150cm × 205cm, Palácio Boa Vista.

Não há almoços grátis, mas ainda existe muito trabalho gratuito. Pior do que o trabalho mal pago é a moda cada vez mais recorrente da substituição do valor do trabalho por bens ou serviços, o chamado trabalho "voluntário". Por isso mesmo, os direitos trabalhistas não podem ser excluídos da base do discurso político e do campo de batalha no espectro democrático. Muito pelo contrário, devem estar no centro da luta social contra o avanço descomunal da desregulação e da onda autoritária que a acompanha.

 

Porém, estes só serão efetivos se forem acompanhados paralelamente de uma pauta (também) identitária, capaz de garantir que a redistribuição da riqueza espelhe também a diversidade social da qual o mercado de trabalho é e deve ser feito. Sem isso, nada vale a pena, pois estaremos apenas a caminhar para o passado. Por isso, não acredito que as duas sejam conflituantes ou excludentes. Embora seja mais fácil esquecer a segunda quando pertencemos ao grupo mais favorecido dos desfavorecidos. Quando somos brancos, heterossexuais e homens, ao contrário de muita gente para quem ser diferente disso representa muitas vezes a negação do acesso ao trabalho, à família, à saúde, à educação, à justiça e à dignidade ou a diferença entre a vida e a morte. Ninguém pode abdicar de ser quem é ou do percurso que fez de si quem é.

 

Sobretudo, porque são essas diferenças que têm servido para perpetuar uma discriminação de acesso aos direitos fundamentais, como a liberdade (em todos os sentidos) e a igualdade de acesso às oportunidades e aos rendimentos. Todos serão trabalhadores, mas uns são menos pagos, menos empregados e menos respeitados ou reconhecidos simplesmente por serem quem são, e isso está mal. Isso é uma injustiça. Enquanto assim for, nenhuma conquista será verdadeiramente universal.

 

Algo ainda mais evidente quando se tratam de sociedades onde estas pessoas constituem a maioria efetiva da população. Uma maioria silenciada que se vê excluída de uma participação plena na sociedade que se constrói e desenvolve, não só com o seu esforço, mas às custas da sua desigualdade. Ou a luta de classes se faz com todos e por todos, ou se limita a substituir os privilégios de uns pelos dos outros. Ou melhor, a substituir o trabalho "voluntário" de uns pelo trabalho "gratuito" de outros...

 

Uma coisa não pode excluir a outra e vice-versa, pois se a identidade pode provocar ojeriza e antipatia das massas, as afinidades de classe por si sós também não serão suficientes para apagar as marcas dessa repulsa. Pois ela ultrapassa qualquer privilégio que a transferência rendimentos ou o elevador social possam prover.

 

Imagem: “Operários”, de Tarsila do Amaral, 1933, óleo sobre tela, 150cm × 205cm, Palácio Boa Vista.