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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Andrómeda não notou a nossa presença

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Andamos na contramão da estrada da humanidade. Era suposto não haver mais diferenças. Era suposto não haver mais fome, nem motivos para que houvesse fome. Era suposto não existirem desigualdades, nem motivos para que estas se agudizem. Era suposto valorizarmos a vida. Era suposto termos esquecido os motivos da guerra e enterrado as armas no deserto. Era suposto estarmos a desbravar a fronteira dos oceanos e protegendo os milhões de espécies que neles habitam, contra a poluição, o desperdício e o consumo excessivo. Era suposto.

Transformámos a nossa convivência num esgoto, jogando nele os pecados de toda a humanidade, que desagua em quase todos os veículos de comunicação a uma velocidade estonteante, contaminando os valores que depois voltamos a beber no dia-a-dia, como veneno da alma. Andamos todos doentes com o vírus do ódio, que nos faz arrancar a pele uns aos outros, cheios de sarna e com hálito a peste negra, entre insultos e chibatadas, damos coices no conhecimento acumulado durante séculos e esmagamos a razão com o impulso da tecnologia. Vamos rumo ao precipício, dispostos a mergulhar no abismo, com a mesma vertigem e loucura que outrora nos conduziram ao inferno.

Cuspimos nas mãos de quem vive e cuida da terra e das ericáceas, roubando-lhe o sustento, a comida, o sol, a chuva, as estações do ano e o oxigénio, adornando o vício da nossa vaidade com o mesmo cinismo com que outrora derretemos os templos astecas, incas e indígenas para transformar a beleza das obras em barras de ouro. Somos os deuses do novo século, que substituíram toda a teologia, filosofia, sociologia, história e ciência, pela veneração do lucro. A fantasia dos números abstratos, imaginários e incontáveis, escondidos pelos códigos binários, calculados por relógios magnéticos ou atómicos, convenceu-nos de que o mundo gira porque nós existimos, fruto dessa ambição que nos faz acreditar que iremos conquistar o espaço. Doce ilusão narcisista, incapaz de contemplar a vastidão do mundo e a limitação da existência.

Confundimos as dimensões do espaço com a grandeza da nossa ignorância, face à insignificância do nosso tempo. Andrómeda não notou a nossa presença, nem sentirá a nossa falta.

O vazio interplanetário, pontilhado pela luz das estrelas moribundas, que nos observam com tédio, não nos diz nada. Contemplamos a ausência de alternativa e não aprendemos coisa nenhuma. A finitude da vida não nos assusta. Seguimos alegres, num baile de contradições, espezinhando os desejos, sonhos, capacidades e oportunidades daqueles que são considerados diferentes. Diferentes de um padrão imoral, onde humanidade é o último fator a ser tido em conta na fila do pão. Competimos, em vez de colaborarmos. Dividimos, em vez de unirmos. Destruímos, em vez de construirmos e preservarmos. Estamos dispostos a exaurir o mundo de bondade, riqueza e bens, para lucro e satisfação do nosso ego. Essa coisa frágil que se desfaz em cacos quando não é alimentado.

Talvez na reta final, nos últimos segundos, um pouco antes do epílogo dos tempos, possamos parar e dar um passo atrás. Quem sabe, dar meia volta e caminhar no sentido oposto. Embora seja difícil acreditar na possibilidade de evitar um descarrilamento deste comboio desgovernado, sem freios nem maquinista, talvez o combustível que faz explodir as engrenagens da ignorância acabe antes da catástrofe. Talvez tenhamos que ir jogando madeiros de apedeutismo janela fora e baldes de luz para dentro do motor do obscurantismo galopante. Talvez.

Talvez não seja ainda noite, mas apenas um eclipse prolongado. Mas mesmo que seja já noite, procuremos sobreviver ao aquilão, agarrados à tocha de fogo de Prometeu, que ilumina a mente em vez de queimar a pele, em busca dos primeiros raios luz na aurora do amanhã. O amanhã virá, como sempre, porque o sol é indiferente à inconsequência dos nossos problemas.