O 1º de Maio
Ontem foi um dia de maratona. Mais um dia no circo plantado á beira de Espanha, Portugal. Ontem celebrou-se o dia Internacional do Consumidor Acéfalo-Esfomeado Português: 1º de Maio.
Vou contextualizar, para todos os que têm a incrível capacidade de viver na Lua pisando solo lusitano, para os que literalmente vivem em Marte, e para os que simplesmente não vivem em Portugal: ontem, 1º de Maio, houve uma cadeia de supermercados, Jerónimo Martins, que resolveu oferecer 50% de desconto a todos os que efetuassem compras acima de 100€ e o resultado foi uma liquidação total das lojas de norte a sul do país. Pelo meio houve tempo para confrontos e batalhas campais entre clientes por “dá cá aquele pacote de açúcar” ou “dá cá aquele último rolo de lombo com validade de 3 dias”, passo a expressão.
Como é que isto é possível? Simples: oferecendo 300% de remuneração aos funcionários, mais um dia de folga e… nem interessa. Em troca do direito ao feriado 1º de Maio. Ao comentar a situação como lamentável, por ter sido levada a cabo como foi e por se terem registado certas imagens e acontecimentos, não fui totalmente compreendido por algumas pessoas. E porque é difícil ser conciso e paciente ao tentar explicar anos de História e que há conivências piores que muita fome, remeto umas luzes sobre este dia para a crónica de Rui Tavares hoje no público e para o texto “Nem só de Pão” de Rui Bebiano.
Além de um golpe publicitário (ilegal – cuja coima se arrisca a ser muitíssimo inferior aos lucros) foi um golpe rude e baixo aos trabalhadores e desempregados sem direitos laborais e a todos os que passam fome. A dita que muita gente vê como quase erradicada de muitas casas nos próximos dias. Juntando a isso a impreparação politica e educacional das massas que, logicamente, colocam a barriga à frente do cérebro. O que tenho a reafirmar é que há conivências que matam mais (pessoas e direitos) que muita fome, sendo que é quando nos esquecemos das conquistas do passado que começamos a somar derrotas. Isto é, o primeiro passo para perder um direito, neste caso as garantias laborais, é esquecendo que temos esse mesmo.
Quanto à fome. A questão que me fica em mente é: quantas pessoas, que passavam fome, mataram verdadeiramente essa fome? Quantas ONG foram ao Pingo Doce ontem? E quem é que passa fome verdadeiramente mas, porque palavra puxa palavra, soube da campanha e tinha ali mesmo à mão no mínimo 50, 100, e até 200 ou 400€ para gastar em produtos cujas algumas das validades terminam em menos de um mês? Tendo ao mesmo tempo forças para lutar por um carrinho de compras ou um pacote de arroz. Algumas famílias de grandes agregados, decerto, e com muitos desempregados. Mas, e hoje, com a fome já encostada a um canto e depois do 1º de Maio, quantos foram os que conseguiram ontem à porta das lojas da Jerónimo Martins assegurar mais emprego, equiparado ao resto da Europa, com direitos laborais, nomeadamente os subsídios de desemprego, Natal e férias, reforma "assegurada" aos 65 anos, educação e saúde de qualidade e tendencialmente gratuitas? Interessante também seria acompanhar várias casas durante o mês e contabilizar quanta comida irá para o lixo por ultrapassar os prazos de validade ou por ficar estragada sem local de armazenamento no apartamento.
Aconselho ainda o visionamento e leitura do: documentário e livro “Donos de Portugal” (Livro – Documentário). Um dia de pois o país continua igual. Continuando a haver milhares de empregados desamparados e desempregados desesperados, mas com muito frigorífico cheio. Serviu os interesses da empresa e do establishment neoliberal, sendo que se falou de tudo neste dia menos do que se deveria ter falado. São poucos os jornais que mostram as manifestações a não ser as que se passaram á porta de tanto Pingo Doce. E sendo que, como me disseram ontem, “ser do povo não mata a fome”, a verdade é que se Povo nem povo quiser ser então pouco mais vale que aquela garrafa de óleo por quem a dona Jocelina deu um murro ao Senhor Marcolino. É a abolição da classe, mas descendo um elevador. A Moodys tinha razão: afinal, sem direito a educação decente, sem sentido crítico, sem noção de direitos cívicos e esfomeados, valemos menos que lixo.
Ah, só mesmo para terminar ficam uns pontos assentes:
Primeiro o Pingo Doce não matou a fome a ninguém, vendeu produtos indiscriminadamente a 50%. Segundo, se o fez só está é a fazer com que a fome daqueles que trabalham no sector primário e secundário se agudize, visto que ficam ainda com menos margem de manobra para negociar contratos com os grandes retalhistas. Terceiro, os pequenos retalhistas vão vender a quem agora? Se antes já não conseguiam lidar com a concorrência, assim ainda pior. Por último, é também triste um país onde as investigações das autoridades são sempre previamente anunciadas.