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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Os Pastores

 

"Still deprived of most modern commodities, an old man warms up the night at his fireplace", em João Pedro Marnoto - Photography

Agora que o nosso 1º Ministro vem a público – num discurso de uma cerimónia oficial – dizer que os portugueses não podem ser “piegas”, que não podemos continuar a “arranjar desculpas para o aluno que tem maus resultados” ou “para o professor que não fez o seu trabalho”, decido passar para aqui uns apontamentos que fiz há uns meses acerca desta política e ideologia de que nem tudo pode ser para todos, nem todos podemos ter tudo, nem todos podemos ser felizes ou nascemos para certas tarefas ou atividades reservadas apenas para os mais iluminados e capazes de financiar-se por si próprios. Ou seja, o regresso a certas ideias que esperávamos que tivessem sido erradicadas mas que afinal estavam plantadas em algumas mentes com uma certa ideia de país, e pelos vistos pegaram e floresceram ao ponto de estarem hoje a governar de novo. Nem vale a pena questionar a formação parca, que muitos os que praticam tais ideias acabam por ter. Adquirida nos corredores do cacique e escondida atrás de uma experiência em obra feita “a posteriori”, um efeito retroativo dos lugares conquistados/comprados ao longo de anos de militância devota.

 

Estamos pobres. Uns financeiramente, outros apenas de espírito e a grande maioria, diga-se, de ambas as coisas. Os estados venderam-se aos mercados financeiros e basearam as suas economias numa teoria de especulação retroativa e sem controlo algum. A Humanidade já viveu até aqui 2 revoluções industriais, e acredito que estamos a viver 3ª; viveu um “crash” da bolsa em 1929, ou dois se considerarmos que foi isso que aconteceu em 2008; o mundo já foi dividido umas quantas vezes em extremos ou interesses e as divisões foram novamente desfeitas (nem todas); já se assistiu a inúmeras ascensões e quedas de diversos regimes e formas de organização social. Mas, e mais uma vez, parece que estamos a chegar ao esgotamento do atual modelo (principalmente económico) que governa a maioria do mundo (ou todo) e que até aqui, para quem puxa os cordelinhos, é considerado o melhor. E no fundo, crua realidade, estamos pobres, somos pobres, não temos nada que possamos considerar para sempre nosso, devemos aos bancos, que por sua vez devem a outro qualquer, etc.. E depois há os iluminados, como creio que se considera o próprio Presidente da República Aníbal Cavaco Silva, que acha que o caminho é só um: sermos pobres e felizes com isso. Ou seja, se não podemos correr a maratona, que fiquemos contentes por ser aqueles que dão águas aos que o podem fazer.

 

 

Para nos fazer entender melhor este estado de espírito serviu-se de uma metáfora do pastor para quem "não havia fins de semana, não havia férias, feriados nem pontes em nenhumas circunstâncias", que mais parece um discurso retirado dos tempos da Ditadura de representação orgânica que se colou à ideologia fascista de Hitler em 1940, pelas palavras daquele que foi arquiteto do “mais longevo de todos os regimes antiliberais da direita na Europa (1927-1974) ”1: professor Oliveira Salazar. Eu, humildemente, faço uma vénia à ignorância ou esquecimento do senhor Presidente. Ou terá sido sapiência? Pois o senhor não conta a história toda. E é essa história que eu me proponho a contar.

  1. O pastor, hoje pastor, terá nascido no ceio de uma família rural, que vivia da conceção de montes, cujas terras teria de fazer render com a colaboração de todos os elementos da família e cujo rendimento ia para os respetivos donos, latifundiários que viveriam em Lisboa, Porto, etc., que lhe pagavam pouco mais do que uma esmola, aos olhos de hoje, e que os deixavam tirar uma parte para a alimentação. E tudo isto parecia um bom negócio, um negócio justo e produtivo, aos olhos do regime e da família. Como tal, valia horas de sol a sol. Por isso o tempo que o futuro pastor passava na escola era visto como um desperdício, mas como teve sorte ainda fez a 4ª classe obrigatória até ganhar algum corpo e se dedicar à terra permanentemente com o pai.
  2. O aprendiz virou finalmente pastor, cultivador, tratador. Aprendeu a fazer todos os ofícios que seu pai aprendera do seu avô antes. Então veio o 25 de Abril de 1974, e com ele a democracia. E os seus patrões escorraçaram-no com medo que se apoderasse das suas terras como tantos outros fizeram por esse país fora, com notoriedade no Alentejo. Com o seu pé-de-meia conseguiu porém adquirir o seu próprio rebanho, as suas próprias terrinhas, singelas, e pastorear também nas terras de todos e de ninguém sempre que possível e oportuno. Sempre que ia a uma feira de gado era uma festa. Ou sempre que chegava uma época de festividades cristãs, como o Natal ou o a Páscoa. Mas entretanto também chegou o senhor Presidente a 1ºMinistro, de um país agora da União Europeia (UE). E o senhor assinou uns tratados com o resto da europa aderente. Então o pastor foi obrigado a abater parte das suas ovelhas e cabras, sem tirar rendimentos delas, e deixar parte das parcas terras que tinha sem cultivo, para que não houvesse uma descida global dos preços praticados na UE. Além disso começou a invadir o país a moda geral dos supermercados, a que todos aderiram, que tinham (e têm) grandes centros de produção e abate com que os pequenos produtores, como o pastor, não podem concorrer e a quem os grandes produtores já se associaram. Cada vez tem menos rendimentos o nosso pastor.
  3. Depois, piores que cogumelos, começaram a surgir inúmeros incêndios, cada vez mais todos os anos, em tudo quanto era mata. Posteriormente, por cima da terra queimada, cresciam campos de golfe e empreendimentos turísticos, havendo cada vez menos terras livres para pastorear. Qual tacada mestre os senhores (dos cordelinhos) apontaram uma solução: dar telemóveis aos pastores para alertarem as autoridades dos incêndios. Os telemóveis nunca chegaram, e o pastor nunca aprendeu a mexer em tal aparelho. A situação agudizou-se claro.
  4. Ainda tendo em atenção as normas europeias surgiu em Portugal uma entidade para fiscalizar e assegurar o controlo de qualidade dos serviços, hoje conhecida por ASAE: Autoridade de Segurança Alimentar e Económica. Foi assim, por não terem qualidade, que fecharam os matadouros, que foi proibida a matança na Páscoa e que os presuntos pata negra espanhóis a preços exorbitantes são e foram criados por pastores e criadores portugueses, que sem matadouro tiveram que recorrer aos espanhóis onde receberam uma ninharia, comparada ao preço de revenda.
  5. O pastor não teve hipótese. Reformou-se por fim. Mas não teve direito a pensão, pois quase todos os negócios que ia fazendo, desde os tempos do seu avô, eram negócios de palavra, de acordo de homens e que nunca falhavam. Mas quase nunca passou uma fatura ou recibo a nenhum restaurante ou particular. Também não se podia exigir muito mais de alguém que não teve tempo para aprender praticamente e a matemática que faz é a da vida. Esta só ficou um pouco mais fácil quando em 2005 o governo de então cria: o Complemento Solidário para Idosos. Mas mesmo assim está cada vez mais pobre. Os filhos do senhorio, que herdaram a casa, aumentaram-lhe a renda, deve uma fortuna na farmácia e anda de autocarro. Mas este ano vai começar a andar a pé, pois ou deixa de ter passe social ou não o consegue pagar. Como não é isento no Sistema Nacional de Saúde nunca chegou a ser operado aos rins nem à bexiga. Está assim, só, à espera de morrer.

 

Como é fácil constatar, os pastores são um tema muito badalado na política das ovelhas que chegam ao poder. Mas a única metáfora que se pode admitir de momento é a seguinte: O Presidente é como o antigo aprendiz de pastor que depois se tornou um, mas há anos que as suas ovelhas estão fracas, doentes, subnutridas, a maioria mortas e ele não vê, nem repara e nem compreende que é ele, a sua ração e as suas plantações que andam a envenenar todos os animais. Além disso continua a permitir que os filhos vendam as únicas que dão lã a preço baixo e sem ver um cêntimo dos lucros.

 

 

 

(1) - Eric HOBSBAWM (1996). A Era dos Extremos. História Breve do Século XX, 1914-1991. Lisboa: Presença.