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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

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Vigiar os ímpetos de vingança

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Portugal foi tomado pela notícia chocante do assassinato de uma criança. Tanto os contornos do crime, como a sua cobertura mediática e o apelo emocional que o envolvem, geraram uma enorme onda de comoção nas redes sociais, na qual transbordaram sentimentos e desejos de vingança, ou apelos legislativos de âmbito penal. Contudo, devemos confrontar essa emoção excecional com a razão, pois só assim evitamos cair no erro de apelar à autoflagelação.

 

Passaram cerca de 3800 anos desde a criação e implementação do Código de Hamurábi, na Babilónia, cujo império governava grande parte da Mesopotâmia. Nele estava inscrita a hierarquia da sociedade, abaixo do rei, fazendo uma diferenciação entre homens livres, superiores, os comuns e os escravos, assim como a estrutura da família. Mas acima de tudo, nele estavam contidos cerca de 300 julgamentos, criando um senso de justiça conhecido por Lei de Talião, onde a punição seria igualada à ofensa e legitimada pelo rei, ungindo pelos deuses. Este sistema enquadra-se na história do Direito Penal como a fase da “Vingança Privada”, sucedendo as eras primitivas da “Vingança Divina”, mas não evitava penas cruéis e desumanas. Era o “olho por olho, dente por dente”, embora nem todos os olhos e nem todos os dentes tivessem o mesmo valor.

 

Essa lógica, de uma pena proporcional ao crime, foi depois recuperada na Idade Média, onde a “economia do castigo”, como Michel Foucault descreve em “Vigiar e Punir”, se inclinou sobre uma vertigem punitivista, repartida entre estado e igreja, na qual os suplícios públicos tinham um carácter eminentemente intimidador, queimando, torturando, decepando, esmagando e esventrando as pessoas (homens, mulheres e crianças) em público. A exibição da pena era uma forma de prevenção e simultaneamente uma punição, onde o corpo era o principal agente. Foi só no Iluminismo, no século XVIII, por causa do repúdio e horror que tais “espetáculos” causavam no povo, e pela baixa incidência de crimes violentos, que se começou a procurar afastar a ideia da violência física, procurando-se então penas de carácter disciplinador ou corretivo, que visassem igualmente a prevenção, mas que seriam um castigo mais para a alma, do que para o corpo. Com alguns avanços e retrocessos, é após o Iluminismo que surgem as Escolas Penais, com os seus doutrinadores, como a Clássica e a Positiva, antagónicas, e as mistas ou ecléticas, como a Terza Scuola Italiana, a Escola Penal Humanista, a Técnico-jurídica, a Moderna Alemã, a Correcionalista e a Escola da Nova Defesa Nacional. Cada uma com a sua interpretação do crime, do criminoso e da pena e sua aplicação.

 

Porém, senso lato, atualmente o conceito de Direito Penal tem três aspetos:  o formal, que é o conjunto das normas consideradas crime; o material, que se refere aos comportamentos reprováveis ou danosos; e, sobretudo, o aspeto sociológico ou dinâmico, que considera o Direito Penal como mais um instrumento de controle social, aplicando-se de forma subsidiária aos restantes ramos (Constitucional, Civil, Administrativo, Comercial, Tributário, Processual, etc.). Este último aspeto está vinculado ao “Princípio da Intervenção Mínima”, que vigora no Direito Penal, no qual ele é a última arma (ultima ratio) a ser utilizada no combate aos comportamentos indesejados.

 

Deste modo, ele deve emanar de um processo no qual deva ser antecedido pela Criminologia, a ciência empírica que estuda o crime, o criminoso, a vítima e o comportamento da sociedade, que por sua vez deve influenciar a Política Criminal, que visa os meios e as estratégias que devem diminuir a criminalidade. Em vez disso, nos últimos dias e sempre que surgem situações que chocam e comovem a sociedade, somos confrontados com a promoção de três tipos de Direito Penal: o Simbólico, que cria leis sem eficácia, ignorando a criação de meios e estratégias; o Promocional, político ou demagogo, usando a lei penal para fins políticos; e o Emergencial, que cria normas de repressão, altera ou aumenta molduras penais e permite restrições de liberdades e garantias, atendendo à pressão popular, para devolver uma falsa sensação de segurança à sociedade, como pedir pena de morte ou prisão perpétua após um homicídio de uma criança. Este último tem uma noção extremamente punitivista, ignorando as liberdades e garantias dos cidadãos, regredindo a uma noção de Vingança Privada, como a do Código de Hamurabi.

 

Quando entramos nesta lógica, atendendo à comoção social, acabamos por dar ao estado legitimidade para oprimir e perseguir os cidadãos, sem restrições. Submetendo-nos à arbitrariedade social do processo, onde a igualdade é substituída pela capacidade monetária, o estatuto e as influências sociais dos atores, mais do que pela aplicação do direito. Estamos a abrir portas à barbaridade estatal, na senda de cumprir os objetivos políticos de quem promove esta lógica de vingança.  Uma realidade na qual não há, por sua vez, a possibilidade sequer de reparação da vítima, abandonada pela sociedade, em prol de uma falsa sensação de justiça.

 

Em última instância, estas questões abrem caminho a uma realidade autoritária, sob uma aparente legalidade, onde os problemas da sociedade – na saúde, educação, no trabalho, nos serviços sociais, na economia, administração pública, etc. – são ignorados e escondidos por um modelo de punição transversal, sem que sejam realmente resolvidos ou prevenidos. Se há coisa que realmente devemos vigiar, são os ímpetos de vingança e linchamento, que se confundem com justiça, mas que nos conduzem a um retrocesso primitivo, onde violência se torna a norma e não a exceção.