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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Pensar o futuro questionado. O que vai mudar?

Talvez o mundo não mude, mas nós podemos melhorar. Se não agora, quando?

O que vai mudar?

Não tenho ilusões sobre o que vai ou não mudar no futuro. A mesquinhez ou cegueira, que tantas pessoas têm revelado recentemente, podem ser tão ou mais assustadoras quanto a propagação do vírus ou os efeitos da doença. Sobretudo quando criam a ilusão de equiparar ciência com achismos, usando o poder e o espaço público para projetar o caos. Contudo, mais do que ter certezas, devemos colocar dúvidas, como forma de repensar o presente, o passado e o futuro.

Por exemplo, olhando para a forma como vários políticos têm lidado com a situação, faz ou não faz diferença ter alguém minimamente decente e competente à frente de um país ou das suas pastas? Afinal, é ou não importante que nos posicionemos sobre que tipo de interesses queremos ver representados nos municípios, nas assembleias, nos parlamentos e nos governos? Faz ou não sentido que nos envolvamos na política, que nos organizemos e que procuremos informação sobre os programas dos partidos e as suas correntes ideológicas? Faz ou não sentido que defendamos um estado social forte, serviços públicos universais nos setores essenciais, como a energia, a saúde, a educação, os transportes, o saneamento básico ou a banca? Faz ou não faz sentido que haja um fortalecimento do ensino universitário público e da investigação científica, através de mais investimento e criando carreiras públicas de investigação? Faz ou não faz sentido apostar, juntamente com isso, nas ciências sociais e humanas, a únicas capazes de estudar e prever o comportamento humano, ajudando epidemiologistas a estimar o impacto de medidas concretas em cenários diferentes? Tudo isto faz sentido, mas duvido que alguma coisa vá mudar.

Nem precisamos de comentar a estratégia genocida de Bolsonaro no Brasil, ou a pirataria de Donald Trump, passando pelas teorias conspirativas contra os dados da China, apesar dos dados científicos apontarem para que não tenha havido nenhuma ocultação ou manipulação da informação. Sobretudo se comparados com os dados de outros países, como a Coreia do Sul, como explicou o Virologista Átila Iamarino no seu canal, assim como um estudo do The Lancet Journal, que ele também citou anteriormente (ambos no fim do texto). O facto de Bolsonaro continuar no poder, com o apoio de cerca de um terço da população, ou de Donald Trump ver a sua popularidade reforçada, apesar dos crimes internacionais que tem cometido contra outros países, como Espanha ou Brasil, ou o facto de todos os dias surgir uma nova teoria conta a China ou o seu governo, proferida tanto por ignorantes como por pessoas catedráticas, são prova mais do que suficiente de que o mundo seguirá o seu rumo sem se desviar do exponencial de absurdo, decadência e miséria a que vínhamos assistindo.

Um abismo que não advém de nenhuma crise futura, porque a existir ela será autoinfligida pelo mesmo grupo que agora pede auxílio ao mesmo Estado que durante as últimas décadas ajudou a desmantelar, favorecendo a acumulação de capital de uns, em função da miséria e desamparo de outros. Hoje, cerca de 2 mil pessoas têm hoje 80% da riqueza total do mundo e não é por acaso. Ao contrário do que o senso comum nos diz, parar as cidades para reduzir a circulação e contacto das pessoas é mesmo a forma mais eficaz de combater os efeitos de um vírus como o SARS-CoV-2. Ou seja, é melhor congelar a economia do que deixá-la apodrecer com uma montanha de corpos empilhados em hospitais, necrotérios ou nas ruas, como acontece já em alguns países. Os estudos sobre os efeitos da “Gripe Espanhola” nos EUA corroboram isso mesmo, as cidades que pararam mais cedo e durante mais tempo, sofreram menos após o isolamento social, evitando uma subida de casos vertiginosa, ou até segundas ondas. Depois disso, conseguiram também recuperar mais rapidamente da queda de consumo, porque tinham menos mortos. Todavia, isso contraria as ideias de quem se limita procurar um viés de confirmação.

Outra coisa que esta Pandemia tem mostrado é que é mais fácil ser populista do que ter razão. Para ter razão, um cientista estuda vários anos, até se poder especializar num determinado assunto, sendo sucessivamente criticado ou elogiado por pares. Já quem só quer ser populista limita-se a dizer o que os outros querem ouvir, mesmo que a realidade o desminta em poucos dias.

Recentemente, a revista “The Economist” publicou um artigo intitulado “Between tragedies and statistics - The hard choices covid policymakers face” (Entre tragédias e estatísticas - As escolhas difíceis que os formuladores de políticas enfrentam). Entre vários estudos, eles abordam os dados sobre a reação e recuperação das cidades americanas em 1918-1919, assim como outros estudos, que revelam alguns dados contraintuitivos. Como o facto de a mortalidade ser procíclica, ou seja, aumenta em períodos de crescimento económico e diminui durante as crises, devido a vários fatores. Outro dado importante mencionado no artigo é referente a um trabalho da OCDE, que constata que alguns agravos nos resultados de saúde, observados após a crise financeira, foram provocados por cortes na Saúde, fruto de medidas de austeridade dos governos, e não pela desaceleração da economia. Ao mesmo tempo, o aumento de gastos com programas de emprego, ajudam a reduzir o número de suicídios. Ou seja, a austeridade é o tratamento de choque que mata as pessoas que sobrevivem às crises económicas.

Por outro lado, também nessa senda, há anos que a Cultura e as Artes têm sido abandonadas pelas políticas públicas e arriscam-se a sofrer ainda mais ostracização no futuro, após milhares de espetáculos cancelados. Apesar disso, os artistas têm sido redentores através da sua abnegação, criatividade e tempo, dos famosos aos mais anónimos. Têm literalmente oferecido a sua arte ao mundo. Daí também a questão, seria possível passar pela atual situação sem acesso a livros, a filmes ou séries, à música ou até aos museus, às milhares aulas artísticas disponíveis, às visitas virtuais ou aos concertos online de milhares de músicos? Se não fosse pelos hinos de solidariedade às janelas de todo o mundo, se não fosse pela expressão da artística, qual seria a nossa esperança?

Esperança. É possível ter esperança? Não quero ter ilusões, mas já era tempo de começarmos a ponderar estas e outras questões. Talvez o mundo não mude, mas nós podemos melhorar. Se não agora, quando?

 

Links e Referências:

[+] Live Coronavírus de 05/04 - A situação do mundo e do Brasil;
[+] Explicação sobre as intervenções de 1918;
[+] Estudo do The Lancet Journal;
[+] “Between tragedies and statistics - The hard choices covid policymakers face”, The Economist;
[+] Comparações de crescimento e taxa de mortalidade do coronavírus.