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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

CARTA AOS MEUS AMIGOS BRASILEIROS: “O POVO NÃO É BOBO”!

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Meus Queridos/as Amigos/as Brasileiros,

 

Esta é a minha declaração de interesses sobre o que se passa no Brasil. Através de vocês, e dos vossos relatos, conheci tanto ou mais (talvez muito mais) Brasil real, do que nas diversas viagens que fiz até lá. Através de vocês fui introduzido à politica brasileira, desde as pequeninas discussões do grémio da vossa escola/faculdade/universidade, às grandes mudanças culturais e sociais que se passam no vosso país, Brasil. Passando ainda, e em grande parte, pela revolução da política Educacional, ao abrigo da qual tive o privilégio de vos conhecer a todos, direta ou indiretamente. Esta carta é para todos os que vivem a pressão destes dias, aos que se manifestam hoje (dia 18 de março de 16), aos que se manifestaram pela devolução das merendas, ou pela reabertura das escolas, aos que conheci em Coimbra e Porto Alegre, pelos intercâmbios e pelo Projeto de Licenciatura Internacional (PLI). Para os de renda baixa, e para dos de renda alta. Todos!

 

A maioria de nós tem em comum uma cidade portuguesa, Coimbra, onde chegaram a estudar mais de 2 mil alunos brasileiros, ao abrigo do PLI. Este projeto conseguiu mais do que se propunha: além de ajudar a capacitar alunos, professores, investigadores e profissionais, ainda salvou a própria Universidade de Coimbra nos últimos 5 anos. Então, conseguem imaginar como, além de ver em vocês a esperança acerca da possibilidade de um Brasil melhor, também me sinto grato por tudo aquilo que proporcionou o nosso encontro! É em vocês, e por vocês, que me posiciono e localizo ou apelo, mais do que qualquer personalidade ou figura.

 

O nosso encontro foi feito na base da mistura e da troca Cultural. Descobri, convosco, mais do que os sabores do açaí, da mandioca e tapioca, do pão de queijo, da polenta ou da feijoada, como é sentir o pequeno prazer de poder viajar sem fronteiras: sem medo de ser assaltado, vivendo cada momento como o último por estarem a realizar um sonho aparentemente inalcançável. Aprendi, mais do que a distinguir os vossos sotaques e trejeitos, como é descobrir o próprio país saindo dele: através do encontro espontâneo de paraenses, gaúchos, paranaenses, baianos, tucanos, pernambucanos, cariocas, paulistas, etc., numa pequena cidade portuguesa. Aprendi que, perto da vossa vida e de todas as batalhas que ela implicou e implica, o meu pequeno-grande descontentamento irreverente com o meu próprio país era insignificante. E até cínico, apesar de válido.

 

Vocês esmagaram-me com as vossas histórias e vivências. É impossível compreender o “samba de emoções” que sentirá alguém que vem do nada (como muitos de vós), sem casa, fortuna ou transporte próprio; ou que vivia a 5h do emprego e/ou universidade; que passou a vida a lutar contra o preconceito, racismo, machismo e homofobia; ver realizado o sonho de ter viajado por toda a Europa até à Ásia e norte de África, com mais de uma dúzia de carimbos no passaporte e uma rede de amigos universal. Para o bem, e para o mal, eu sei que foi o progresso económico, político e cultural dos últimos anos no Brasil que vos proporcionou isso. E essa medida educacional talvez tenha sido uma das medidas mais revolucionárias das últimas décadas da América-Latina: financiar os estudos de alunos carenciados, por via do mérito comprovado, durante 2 anos, em Universidades internacionais, com uma renda mensal equiparada ao custo médio de vida do país de destino. Em lugar algum do mundo existe um movimento tão libertário como esse.

 

Meus Queridos/as Amigos/as, eu vi que nenhum de vocês se manifestou nem dia 13, nem dia 16, nem ontem, dia 17 de março de 2016. Pelo contrário, fizeram questão de denunciar o embuste mediático: aquela manifestação, profundamente fascista, foi contra vocês e tudo o que acreditam. Foi, é e continuará a ser – independentemente de tudo o que seja o mote, desde prisões ilegais, a escutas ilegais, às pastas do governo – contra vocês, que ousaram concorrer a uma universidade pública sem nunca terem estudado em colégios privados; vocês, alguns filhos de “pedreiros”, “motoristas” (como eu!), “agricultores”, “empregadas domésticas” (como eu, novamente!), “garçons” (olha, eu também fui um). Enfim, como se a profissão fosse sinónimo de caracter, como (ainda é) de estatuto.

 

Sim, foi e é contra vocês, “favelados”, que estavam “viajando pela Europa”. Vocês queridos/as, que ousam trabalhar 12h, estudar outras tantas e dormir no regresso a casa ou nos intervalos, mas que têm um computador, uns ténis ou um telemóvel parcelados, como sinal de “ostentação”. Sim, estas manifestações e Golpe Fascista (já lá irei) são contra vocês que pouparam grande parte da vossa bolsa para ajudar as vossas famílias. E que, em alguns casos, ainda lhes pagaram uma viagem, que foi também um reencontro ao fim de 2 anos. É contra vocês que, imagine-se, decidiram amar e manter amores à distância. E contra muitos de vós que serão ou são professores, concursados, advogados, pesquisadores e, também, políticos e seres politizados.

 

É por isso que desta vez só quem se assemelha a vocês, por convicções, inerências partidárias, cor de pele e com a mesma divergência de opinião, é que tem sido agredido, mutilado e linchado  na rua. O processo político, social e histórico que o Brasil vive não é contra a corrupção! É sim pela instrumentalização populista dela, contra o fim da mesma, e a favor da manutenção dos privilégios e status que ela permite. Claro, nem tudo é tão simples.

 

O movimento Fascista que tem tentado dominar o asfalto brasileiro não é contra a corrupção, nem contra a Dilma, ou o Lula, ou sequer contra o PT, mas sim contra vocês! Vocês meus queridos/as, de renda baixa ou alta, novos e velhos, de todas as cores políticas, géneros e proveniências, que são, acima de tudo a favor da Democracia. Vocês que querem um Brasil Laico, com Separação de Poderes, Liberal e Progressista. Mas, também um Brasil seguro e menos desigual, onde a corrupção não seja um hábito cultural despenalizado pela condescendência elitista.

 

É contra vocês que acreditam na Constituição e respeitam a Lei, como garante de um Estado de Direito. Que promovem atos cívicos e reivindicam melhores condições sociais e menos desigualdades, por oposição a qualquer ódio ideológico. Vocês e todos os que não querem um Estado Policial, nem querem que a Justiça (mesmo que imperfeita e com imensas falhas) sirva de gatilho e monição ou instrumento de uma convulsão política e social. Nem, menos ainda, aceitam que esta sirva como instrumento de manipulação em massa, por via de um grupo de comunicação – como em 1954 e 1964. Vocês, que sabem que a realidade política, social e económica do Brasil é mais complexa que as imagens de trafego da Avenida Paulista, e que por isso mesmo não se deixam iludir com a polarização sectária, de culto e de classe, que a elite mediática quer impor. Através de um discurso simplista do justicialismo, da personificação do mal e da caça às bruxas. Como o é também a “Lista de Boicote aos Artistas Petralhas” de Rodrigo Constantino.

 

Vocês sabem que nada no Brasil é tão simples e redutor como parece.

 

Nem o Brasil (e todos os seus problemas) é o Governo, nem o Governo se resume ao PT. E o PT não é o “Poder”, nem representa toda a Esquerda, e muito menos se reduz a Dilma ou a Lula da Silva. Da mesma forma que a Corrupção não começa nem acabará com um governo, ministro ou partido, nem com ou pela vontade de um juiz. A Corrupção não é obra exclusiva de ninguém, nem acaba na bandeirada de táxi ou na conta da mercearia. E a politização do Sistema Judicial, quando se quebram todos os juramentos, leis e Constituição, em favor de uma jornada pessoal e ideológica, também é uma forma de Corrupção. Vocês sabem, porque vocês são o Brasil, o real!

 

O vosso país, meus Queridos/as, é feito por pessoas como vocês, que não cedem à conversa moralista e chantagista de uma fação amoral, que quer implementar um Golpe de Estado, através de sectores de massas da população que aderem à onda de ódio. Vocês têm nas mãos o futuro de um país que há muitos anos deixou de ser mais do que o resultado da euforia dos pés descalços, da escola e samba ou dos golos pela seleção brasileira. Mas que é hoje um país que exporta em tecnologia, tem alguns dos maiores investigadores do mundo e um cosmos de criação cultural e artística global.

 

Por isso, meus amigos/as, que me ensinaram as lendas do Boto, que me falaram da apanha do caranguejo na lama e me levaram ao largo da Ilha das Flôres e da Ilha Pintada, tomando um chimarrão, e que me deram amor: resistam! Sejam a resistência democrática e esclarecedora que a Constituição e as eleições sufragaram. Sejam a voz do pluralismo de uma sociedade tão heterogenia quanto vocês. Sejam o baluarte da Liberdade e do “Progresso”, estampado na vossa bandeira, que o fascismo e o nacionalismo vos querem roubar! Acima de tudo, sejam o Brasil que me deram a conhecer: de Esperança, Inventivo e Comunitário! E como sempre, “façam amor, e não golpes”, porque mais uma vez “o povo não é bobo”!

 

Portugal, 18 de março de 2016,

João M. Pereirinha

 

 

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