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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

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A música do Zeca era a mais importante do mundo

José Afonso

Primeiro descobri o rap e o hip-hop. Depois é que descobri o Zeca. Entre os CD’s contrabandeados no liceu e pirateados nos torrent’s de internet, da Margem Sul à Amadora, de Chelas ao Bronx, as mensagens das letras eram tão ilegais quanto os próprios discos. Não foi difícil saltar de Gil Vicente para o rap/hip-hop tuga, NBC, Sir Scratch, DNA, Ruiz, Valete, Adamastor, Xeg, Sam The Kid, Tekilla, Chullage, Mind da Gap... e daí para o Camões, ou do Pessoa pra o Zeca, tantas vezes referido nas letras dos primeiros. Aos 16 anos, achava que a música do Zeca Afonso era a mais importante do mundo. Ou, pelo menos, que já o tinha sido. Claro que mais tarde descambei no grunge dos Nirvana, no punk e no rock amadurecido dos Pink Floyd, sem deixar de passar pelos clássicos ou de me perder nos devaneios frívolos do pop contemporâneo. Mas eu pedia já fora de tempo, como um adolescente nascido nos dias de liberdade, “venham mais cinco, duma assentada que eu pago já, não me obriguem a vir para a rua gritar, que é já hora de embalar a trouxa, tiriririri buririririri, tiriririri paraburibaie, do branco ou tinto, se o velho estica eu fico por cá”. Isto mais tarde, com a perfeita noção de que “o que faz falta é animar a malta”, antes que eles venham. Porque eles, “eles comem tudo e não deixam nada”. E vieram e comeram e deixaram muito pouco ou nada. E muitos embalaram outra vez a trouxa para zarpar.

 

Mas durante esse tempo mostrei o Zeca aos meus amigos. Ensinei o Zeca aos amigos do Brasil que me mostravam Tom Jobim, Caetano Veloso, João Gilberto, Gilberto Gil, Elis Regina, Cazuza, Djavan, Chico Buarque ou Cartola. Eu dava-lhes o Zeca de braço erguido. Não apenas pela sua Grândola, a “terra da fraternidade” onde “o povo é quem mais ordena”, mas também porque as suas músicas vinham dar lugar a uma amizade “maior que o pensamento, em todas as fronteiras”. Antes do próprio fado, aprendi a gostar da canção de Coimbra e da balada. Há quem ache difícil gostar-se genuinamente de uma música assim tão simples. “Havemos de ser mais, eu bem sei”. É difícil ser unânime. Até para quem ousou ser poeta e cantor de intervenção, quando alguns só falavam baixinho no ralenti das madrugadas, abarcarcando a cultura e identidade de um país com tantas diferenças, sem negar aquelas que foram daqui d’além mar até aos dialetos de África. Sobretudo quando vivíamos tempos conturbados. E ainda vivemos, “vejam bem que não há gaivotas em terra, e se houver uma praça de gente madura e uma estátua, uma estátua de febre a arder, anda alguém pela noite de breu à procura e não há quem lhe queira valer”.

 

Por isso é que a música de Zeca Afonso que mais me emociona não é nenhuma das já mencionadas, nem sequer pertence aos tempos prévios à Revolução dos Cravos. Ela não tem o paraburibaie, mas fala de índios. Dos índios que em 74 tentaram erguer o sonho de pôr tijolos na Meia Praia, com o SAAL, no lugar das cabanas que lhes serviam de casa. Mas que em 2012 se viram novamente despojados, para dar lugar a um campo de Golfe. Os mesmos, hoje outros, que agora protestam na Ilha do Farol da Ria Formosa, em Faro. Ainda hoje me chegam as lágrimas salgadas às dunas dos olhos tapados de areia num país com tanta Meia Praia. Todos os dias são bons para recordar Zeca. Hoje, 30 anos após a sua morte, é um dia ainda mais especial, “quem diz o contrário é tolo”. Seja como hino da liberdade ou refúgio das utopias, a música de Zeca Afonso pode ser a mais importante do mundo de muitas maneiras, sobretudo numa terra de índios com tantos meios sonhos.

 

“Das eleições acabadas
Do resultado previsto
Saiu o que tendes visto
Muitas obras embargadas
Mas nao por vontade própria
Porque a luta continua
Pois é dele a sua história
E o povo saiu à rua
Mandadores de alta finança
Fazem tudo andar pra trás
Dizem que o mundo só anda
Tendo à frente um capataz”


"Os índios da Meia Praia" de José Afonso, editado a partir do álbum "Com as Minhas Tamanquinhas" (1976).

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