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Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Vetores da Inutilidade

Poesia, Atualidade, Crítica, Opinião, Artes e Cultura. Um blog por João M. Pereirinha

Obrigado, Obama!

Poster de Obama por Shepard Fairey

Independentemente de todas as divergências ou convergências políticas e ideológicas que tenha tido ou possa ter sobre a análise e papel do mandato de Barack Obama, durante oito anos como Presidente dos EUA, posso deixar-vos uma pequena confidência: se não fosse Obama, nunca teria ido para a universidade. Em 2008, enquanto era presidente da comissão de finalistas e tinha começado um programa de rádio, chumbei pela primeira vez no exame nacional de Matemática A. Ao mesmo tempo conseguia passar à cadeira de Física, "o problema do João é que sabe explicar, mas não percebe nada e matemática", dizia-me o meu professor. Tinha razão. No ano lectivo seguinte, 08/09, voltei a repetir a disciplina, conciliada com Psicologia, e voltei a chumbar na matemática, enquanto tirava notas excelentes na outra. Entretanto, Obama era eleito, sob o slogan do "Yes We Can!", o apoio de quase toda a comunidade artística que eu conhecia, herdava uma crise mundial que, no caso particular da minha família, nos tinha afectado bastante e cortado imensos sonhos. No final do ano inscrevi-me finalmente num colégio de Ensino Recorrente em Almada e decidi que iria passar, fazer os exames de Língua Portuguesa e concorrer a qualquer coisa em letras ou comunicação (o jornalismo era o que mais me atraía). Tinha a hipótese de ir a Almada todas as semanas e fazer o exame no final de cada trimestre, sendo que seria quase impossível passar logo no primeiro, em Janeiro. Até que, Barack Obama faz o discurso inaugural daquele ano lectivo. O jornal i, na altura acabado de abrir, não só com um grafismo extraordinário e atraente, mas com uma redacção de 70 profissionais e alguns rasgos de paixão, imprimiu o discurso nas duas páginas centrais. Li aquelas palavras e fiquei galvanizado, "Yes We Can!", "Yes You Can!", voltava ele a dizer e desta vez aos mais jovens, a mim. Fui procurar o discurso na internet e vi-o repetidamente, ele deixava uma mensagem de empenho para qualquer jovem, não só americano, onde enfatizava que o que importava não era o número de tentativas, mas sim conseguir atingir os nossos objectivos, dando exemplos de vida desportivos e culturais como Michael Jordan ou J. K. Rowling. Guardei aquelas páginas, emplastifiquei o frágil papel de jornal e colei-o na parede. Pedi apontamentos de anos anteriores, exames, livros de exercícios e, religiosamente, durante três meses, estudei mais matemática que alguma vez até ali. Fiz todos os exercícios em casa, comparei com as resoluções, refiz, enviei dúvidas por e-mail ao professor, para economizar nas viagens e na quebra de rotina e, quando chegado a Janeiro, passei (aliás, fui o único a passar) no exame com 15 valores. Mais tarde, arranjei emprego num café para pagar as minhas despesas, voltei a estudar e a fazer os exames de Língua Portuguesa e candidatei-me ao Ensino Superior. O resto, pode ser discutível, mas a verdade é que Estudos Artísticos também foram uma paixão inesperada da qual não me consegui divorciar. A verdade é que aquele discurso permaneceu na parede do meu quarto durante alguns anos e ainda hoje o tenho guardado. Seja como for, a verdade é que, talvez sem ele, não seria, sem dúvida, a mesma pessoa que sou hoje. Por isso, de certa forma: Obrigado, Obama!

 

Imagem: Poster de Obama por Shepard Fairey.

Dar o peito às balas da intolerância

Jonathan Bachman | Reuters

A inconstância dos tempos leva-nos a temer o pior. Mas não podemos deixar que o medo se apodere de nós. Fazer amor não chega, é verdade, praticá-lo diariamente é pouco e distribuir afetos é insuficiente. Infelizmente há titãs que não se derrotam apenas com uma oposição caridosa. Hoje, como sempre, tudo depende de nós e da nossa apatia ou sensibilidade perante os problemas e ameaças diárias.  Devemos começar a combater o imperialismo da desordem e do preconceito no pial da nossa casa, dentro da nossa própria morada, porque a transformação depende de começarmos a ver, mais do que olhar.

 

Abrir a mão aos outros, e não dos outros, é meio caminho para destruir as barreiras que nos isolam, que nos deixam sozinhos, num deserto de ódios, preconceitos, mentiras e injustiças. A nossa luta não pode ser individual, deve ser, antes demais, um gesto de humanismo e solidariedade coletiva, perante o desamparo dos outros, que saltam no trapézio sem rede da desigualdade.

 

Precisamos, antes que nunca, mais cedo que tarde demais, de lutar pela afirmação dos Direitos Humanos em todos os cantos do mundo. Algo que implica lutar pelo direito à dignidade, ao reconhecimento e aceitação, inclusão e partilha de bens, com todos os refugiados e sem-abrigo do mundo. Há mais de 50 milhões, a maioria à porta da Europa. Muitos deles a morrer de frio, nas ruas ou em tendas cobertas de neve. E ainda assim, esses são apenas uma franja dos poucos que conseguiram escapar por entre as frestas do tempo, de uma guerra de holocaustos que se dissemina não só na zona do Magrebe, mas por todo o continente africano, em especial na zona do Sahel, onde terroristas, ocidentais, exércitos e drones, lutam por urânio, escravos e soberanias. A única soberania legítima em todo o mundo é a do Humanismo, entre pessoas e povos. Tudo o resto são meros pretextos para batalhas vãs de desumanização e horrores.

 Migrants saved by the navy in Mediterranean | Marina Militare/Anadolu Agency/Getty Images

FOTO: Migrants saved by the navy in Mediterranean (25 May, 2016) | Marina Militare/Anadolu Agency/Getty Images

 

Temos que substituir o fogo e a dor por uma paixão desmesurada pelo reconhecimento à dignidade de todos. Dos pobres, das mulheres, dos refugiados e de todo o pluralismo cultural, sexual, religioso e social. A luta contra o mal deve pautar-se pela sustentabilidade das nossas relações, frente a um precipício de ignorância sobre o qual devemos erguer uma ponte de razão.

 

Devemos semear a paz em qualquer lugar, mas desde logo nos nossos lugares-comuns do quotidiano, onde podemos renovar e redescobrir a nossa forma de estar. Em vez de viráramos os holofotes da nossa atenção para a barbárie mediática, puxemos furiosamente a corda das velas deste barco perdido que é a Humanidade, a favor dos ventos da verdade em que possamos confiar, diariamente, na direção da luz de um porto de esperança, ténue, mas real, onde possamos atracar a nossa voz, por entre o breu dos dias. A água destes mares incertos, por navegar, não pode ser desperdiçada num jogo de rebentações espumosas onde ninguém ganha.

 

Aqui, hoje, está frio demais para apostar nos desígnios dos tiranos que podem fazer tão pouco perante nós. Nós é que nos devemos opor ao escrutínio bélico, neste planeta onde deixámos que a diversidade se transformasse em medo e o medo em solidão. Devemos ser nós a afirmar, por cima de todo o tempo que já passou, que queremos ficar à frente de todas as balas de intolerância, de todos os bombardeamentos da ganância do fim dos tempos. Depois do fim, tudo o que é nosso é tudo aquilo que não podemos largar: a vontade de amar os outros e dividir com eles aquilo a empatia capaz de nos humanizar, de novo, que rasga o escuro das mágoas que o medo quer deferir. Nós, homens, não podemos perder perante os monstros.

 

Foto de Capa: Demonstration in Baton Rouge, 9 de julho, © Jonathan Bachman/Reuters